Moça com botas de borracha
Coisas e Coisas

Moça com botas de borracha


A jovem jornalista já havia traçado um plano para sua carreira antes mesmo de se formar: queria trabalhar com moda, sua grande paixão. Gostava daquela vida de desfiles, badalação, coquetéis, gente famosa, além de entender bem de roupas, tecidos, tendências. Era também elegante, bonita, magra. Estava decidida a ser uma nova Erika Palomino.

Mas a vida é quase sempre ingrata com os jovens jornalistas, e seu primeiro emprego foi o de repórter no caderno geral de um jornal impresso. Pensou em desistir logo no dia de estréia, mas logo lembrou que a coisa poderia ser pior, poderia nem ter emprego, como vários de seus colegas da faculdade. Melhor isso do que nada. Fazia de tudo um pouco: ronda policial em delegacias, matérias sobre buracos nas ruas, a tubulação de gás natural que explodiu, uma passeata de garis no centro da cidade em protesto ao Boris Casoy. Brincadeira, eles só queriam melhores salários.

Um dia, estava de bobeira na redação, quando foi chamada à mesa do pauteiro. Recebeu uma inglória missão: visitar a região da cidade mais afetada pelas chuvas daqueles dias, entrar na favela, ver o que sobrou, conhecer as histórias de quem perdeu tudo.

- Bonitinha como você é, vai fazer o maior sucesso no pedaço, brincou o pauteiro.

- Mas eu não tenho nem sapato adequado para entrar numa favela submersa, retrucou.

O pauteiro lhe indicou uma caixa no chão, com um par bem velho de botas de borracha, uns dois ou três números maiores do que o pé da moça. Melhor isso do que nada. Já estava se acostumando a este tipo de resignação. Deixou a redação já com as botas enormes nos pés e ainda ouviu alguém cantarolar: “É isso aí”.

A água já havia baixado quando ela chegou à favela. Muito lixo, lama, cheiro forte. Meio desajeitada com tudo, caminhou pelo lugar, observou cada detalhe com atenção, a expressão no rosto de cada pessoa que trabalhava para salvar o que restou. Foi ganhando coragem. Visitou vários barracos, conversou com muita gente, conheceu dramas variados, do fogão novinho das Casas Bahia que virou sucata ao menino que desapareceu no córrego. Foi até convidada a tomar um café no barraco da dona Elza, uma velha muito simpática.

- A senhora acredita que nós, jornalistas, podemos fazer alguma coisa para mudar a situação de vocês aqui?

- Ninguém muda nada aqui, não, minha filha. Faz mais de 15 anos que a gente sofre com enchente. O bom é que, com os jornalistas aqui, a gente pode, pelo menos, falar mal das autoridades. Assim, a prefeitura vem mais rápido limpar a entulhada toda deste ano.

O café no barraco da dona Elza, feito num fogo improvisado, foi longo. A jornalista teve oportunidade de conhecer toda a família que ali morava, inclusive o caçula que, quando crescesse, queria ser jornalista. Ou bombeiro. Tudo havia sido tão intenso na favela que ela até esqueceu que as botas grandes e velhas a incomodavam. Antes de partir, ainda teve tempo de brincar com um vira-lata bem sujo, escorregar na lama e sujar a bunda.

Naquela noite, antes de dormir, estava feliz, ao contrário dos primeiros dias no jornal. Pensou até que a vida da Erika Palomino deveria ser, assim, meio sem graça, sabe?



loading...

- Não Basta Ser Mãe
Dona Maria torceu o nariz quando a filha, Luiza, revelou que seria jornalista. Só ficou mais calma quando Luiza explicou que a profissão dava futuro, sim! Disse mais: um dia, seria famosa, trabalharia numa TV – quem sabe na Globo? –, e sua mãe...

- Me Dá Uma Pauta Aí
Ele até conseguia suportar a rejeição da menina que amava, do pai, que queria um filho médico, mas não a rejeição do pauteiro. Tem dor maior para a alma de um jovem repórter do que a dor de ficar sem pauta? Enquanto os outros repórteres estavam...

- O Despertar De Um Jornalista
Fora as raras ocasiões em que ele me passava o aviso na véspera, meu pauteiro me ligava, todo dia e religiosamente, às 8 e meia da manhã. Era o momento de conhecer a minha matéria do dia. Podia ser coisa boa ou coisa ruim. Ou coisa nada a ver. Ou...

- Um (t)exto (p)ara As (m)ulheres
Ela tinha um filho de dois anos para sustentar, um monte de contas para pagar, um ex-marido que não depositava o dinheiro da pensão. E trabalhava como jornalista. Nos dias de TPM, que eram muitos, ela tinha a certeza de que o pior de toda essa história...

- O Sanatório – Parte 2
Meu amigo foi um jornalista brilhante, texto impecável, faro apurado, mas tinha um grande defeito. Sempre achava que os outros jornalistas queriam roubar as suas pautas. Na redação, vivia debruçado sobre o computador para que ninguém descobrisse...



Coisas e Coisas








.