Refeição
Coisas e Coisas

Refeição





Fecho os olhos. Busco inspiração. Ultimamente minha vida tem sido essa: a busca pela inspiração. Uma música. Um riff de guitarra. Um amor. Alguém para odiar. Ou, simplesmente, o tédio que me consome. Um tédio maior que eu mesmo. Ao mesmo tempo, meu estômago reclama por comida. Faz tempo que não tenho uma refeição decente. Algo que possa ajudar na minha dieta equilibrada.

Sim, eu sou antiguado. Ainda sou daqueles que prepara a própria comida. Ainda caço. Embora a caçada não me estimule mais. Hoje em dia, me estimula mais a preparação dos alimentos. A possibilidade de cortar a carne dessa ou daquela maneira. A possibilidade de retirar a pele sem estragar o que está por baixo. Um ritual. Um estilo de vida.

Eu sei que a maioria das pessoas me desprezaria se soubesse o que eu faço. Mas eu também desprezo a maioria das pessoas. Nunca me interessou as suas pequenas histórias humanas. Suas vitórias ou suas derrotas. Suas lágrimas de remorso ou felicidade. Eu não choro. Talvez tenha me emocionado uma ou duas vezes na vida, mas em ocasiões muito peculiares.

Quem não se emocionaria por conseguir colocar a mão em um coração ainda batendo?

Quem não se emocionaria em conseguir ver esse coração ainda tentando bombear sangue enquanto você o segura com tranquilidade?

Mas hoje não é um desses dias especiais. Hoje é apenas um dia de adolescente. Um rapaz franzino de 17 anos. Mais um desses que pensam que vão se dar bem com um cara mais velho para lhe pagar umas bebidas. Umas drogas. Uma noitada em um motel. Ou seja, trabalho fácil demais. Não pensem que eu estou julgando o rapaz. Ele é até bonito. Moreno. Cabelos curtos. Um peito bem delineado. Simpático. Quase inteligente, eu diria. Mas para mim, nesse momento, ele é só alimento. Um pedaço de carne.

Eu sei que não ando muito inspirado, por isso fecho os olhos. Por isso, pela primeira vez, coloco uma música. Algo que me embale. Me forneça o ritmo para poder deslizar a lâmina sobre o rapaz. Arrancar a pele suavemente para que ela não se rompa. Dividir o corpo pelas articulações. Vislumbrar a exata noção daquilo do que somos feitos.

Ou melhor, daquilo do que ELE é feito. Eu ainda não estou totalmente convencido de que sejamos todos feitos da mesma matéria. Dia a dia aumenta minha desconfiança de que eu seja diferente dos demais. Sou alguma espécie de animal. Raro. Disfarçado em um corpo de homem.

Então eu danço com o esqueleto do rapaz enquanto sua carne está assando. A mesma música que me serviu durante o descarne, serve também para o baile. Essa música que fica repetindo na minha cabeça. Esse hino latente. Essa história sem fim.

Então conversamos, eu e ele. O esqueleto. E eu lhe conto contos infantis. João e Maria. E a bruxa. E ele me ajuda a fazer mais uma letra em minha tatuagem. Falta muito pouco para completar a frase que eu ainda não sei o que significa.

Então eu como sua carne. E ele passa a fazer parte de mim. Sua história é também a minha. E eu tenho novamente 17 anos... por um tempo. E meu apetite está satisfeito... por enquanto.





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