Do que somos feitos?

Diz a lenda de que somos preenchidos por órgãos vitais, água, sangue e vísceras. Um sistema de músculos e nervos. Um processador orgânico poderoso que transforma tudo aquilo que engolimos em energia e sujeira. Que nosso corpo é uma máquina de tal engenhosidade e sujeita a um funcionamento preciso, onde cada parte depende da outra. Uma máquina. Orgânica... mas uma máquina. Dizem que se cortarem uma pessoa em fatias conseguiremos ver todas as fibras de seu corpo em perfeita sintonia. Funcionando como uma engrenagem.

Não sei. Sou afeito a não acreditar nessas coisas místicas.

Tenho pra mim que, se algum dia, me abrirem em dois, irão encontrar no meu estômago alguma recordação perdida. Uma imagem de todas as coisas que eu podia ser, mas não fui. Uma sucessão de relações que não terminaram bem e deixaram bilhetes que eu nunca li, pois nunca consegui digerir completamente. Em algum lugar do meu fígado, encontrarão todas as noites mal dormidas. Algumas delas bem aproveitadas. Outras que eu nem me lembro mais. Em algum lugar do meu corpo hão de encontrar todos os meus desejos. Alguns que eu nunca tenha contado para ninguém. Outros que eram anunciados aos sete ventos. Uns que eu consegui realizar e que perderão a validade. Outros que eu nem sabia que tinha.

Tenho pra mim que deve haver alguma criatura minúscula que fica dentro de mim fazendo o leva o traz de sensações e objetos. Uma criaturinha de merda que fica me cutucando nas horas mais impróprias. Que fica me soprando no ouvido os palpites mais equivocados. Que nasceu junto comigo e tem como única função atrapalhar o meu caminho. É ela que me enche de pavor nos momentos mais simples e que me deu coragem para fazer as maiores burradas. Ela corre por dentro do meu corpo. Com tal rapidez que ao ver pelos meus olhos qualquer imagem, sai distribuindo chutes pelo estômago e outras partes.

Tenho pra mim que, no dia da minha autópsia, em que me cortarem ao meio para entender do que morri, ficarão um pouco confusos. Pois, para entender como morri, será necessário entender como vivi. E minha vida, embora pareça normal como qualquer outra, não é. Não é um amontoado de momentos dispersos. De objetos que carrego no ventre. De músculos e sangue. De criações e criaturas. De fibras e carboidratos. De reações e palpites. Não.

Minha vida é tudo isso, mas é mais. Minha vida se concretiza nas ações que faço. Embora essas ações sejam motivadas pelos mais distintos motivos e razões que habitam outras partes do meu corpo. Minha vida é simples... quase sempre. Minha vida é algo inexplicável. Embora eu tenha passado este texto inteiro tentando fazê-lo.