Coisas e Coisas
Raymond Williams (1)
No capítulo "Technology and the Society" do livro
Television, Williams escreve que a televisão alterou o mundo, o que leva a que se fale de um novo mundo, uma nova sociedade. Ele considera causas e efeitos. As questões relacionadas com causa e efeito são entre tecnologia e sociedade e têm uma acção prática. O autor refere-se à tecnologia e aos usos da tecnologia, a instituições relacionadas com tecnologia e aos seus conteúdos. Ora, a televisão é uma tecnologia cultural particular.
A análise de Williams parte de três pontos (os subcapítulos): 1) versões de causa e efeito na tecnologia e na sociedade, 2) história social da televisão como tecnologia, 3) história social dos usos da tecnologia da televisão.
No primeiro ponto, das versões de causa e efeito na tecnologia e na sociedade, há afirmações como: 1) a televisão foi inventada como resultado da investigação científica e técnica. Em vez de apenas um meio de notícias e entretenimento é o meio fundamental das notícias e entretenimento, 2) adquire a forma de meio institucional fundamental, 3) alterou as nossas percepções da realidade, 4) articula-se com outros factores como a mobilidade física, 5) adquire um papel central na vida da família, da cultura e da sociedade, 6) o investimento e desenvolvimento da televisão leva-a a um novo tipo de sociedade, 7) tornou-se numa nova fase lucrativa da economia doméstica do consumo, 8) realça elementos de passividade e desadequação cultural e psicológica, 9) explora as necessidades de uma sociedade complexa e atomizada.
A afirmação sempre presente é “a televisão alterou o nosso mundo”. As cinco primeiras afirmações são vistas como determinismo tecnológico, que é uma perspectiva ortodoxa da natureza da mudança social. As outras quatro afirmações são menos deterministas. Aqui destaca outros factores na mudança social. Williams fala do grande debate entre estas perspectivas, a do determinismo tecnológico, em que as novas tecnologias são uma variável independente, e a da tecnologia sintomática, em que essa independência é mais marginal. Williams propõe uma interpretação diferente.
No segundo ponto, a história social da televisão como tecnologia, Williams entende que a invenção da televisão não resulta de um acontecimento isolado ou de um conjunto de acontecimentos. Ela depende de um complexo de invenções e desenvolvimentos na electricidade, na telegrafia, na fotografia e cinema, e na rádio. Ele identifica dois períodos principais (1875-1890; décadas de 1920 e 1930). As vantagens da electricidade relacionam-se com as necessidades industriais, mobilidade e transferência da electricidade e flexibilidade. A electricidade, além das fábricas, vai servir as cidades e os lares. O desenvolvimento do telégrafo foi mais simples, com a transmissão de mensagens através de equipamentos eléctricos. A telegrafia eléctrica ocorreu na década de 1870, a mesma década em que o telefone se desenvolveu [há uma imprecisão de datas, pois o telégrafo é anterior]. Williams junta a ideia de imagens em movimento (cinema) com o efeito da persistência na visão humana. Ele descreve depois a televisão e as suas etapas anteriores. Apesar da previsão do seu aparecimento, foram necessárias a existência da válvula electrónica e do amplificador multi-etapas.
O autor refere um conjunto alargado de invenções (e descobertas) científicas e a rivalidade entre sistemas mecânicos e electrónicos (hoje objecto apenas da história, pois a digitalização ultrapassou esses sistemas). Williams destaca o número de campos complexo e relacionado em termos de sistemas de mobilidade e transferência de produção (eléctrica, radiodifusão) e comunicação. Isto é: uma característica dos sistemas de comunicação é que foram previstos – não em termos utópicos mas técnicos – antes dos componentes fundamentais dos sistemas desenvolvidos terem sido descobertos e melhorados. Isto liga-se a uma longa história da acumulação capitalista e ao trabalho de melhorias técnicas, criando novas necessidades e novas possibilidades.
Quanto ao terceiro ponto, a história social dos usos da tecnologia televisiva, Williams coloca a questão de uma relação entre uma nova sociedade móvel e complexa e o desenvolvimento da moderna tecnologia de comunicação. Os incentivos nasceram de problemas de comunicação e controlo militar e de operações comerciais. As tecnologias permitem passar informação específica e manter contacto e controlo. Isso foi visível na segunda fase da tecnologia (electrónica) – a rádio, mais tarde tornada uma tecnologia para o público geral. Williams indica um conhecimento crescente da mobilidade e mudança como marcadores no processo social de comunicação. O autor reflecte sobre a palavra massa: organização de massa, comício de massa, produção de massa. Mas a rádio sonora e a televisão foram desenvolvidas para a transmissão para lares individuais, embora nada na tecnologia o tornasse inevitável. Se a comunicação social está ligada à comunicação de massa, com os media a irem alcançar muita gente, a massa é ultrapassada pela oferta de aparelhos individuais.
Ao contrário de todas as tecnologias de comunicação anteriores, a rádio e a televisão eram sistemas inicialmente previstos para transmissão e recepção como processos abstractos, com uma pequena ou nenhuma definição de conteúdo. Este, quando muito, era parasitário – eventos do Estado, acontecimentos desportivos, teatro [eu tenho uma posição mais moderada que Williams, embora o entenda. A rádio deve a tecnologias anteriores, mas também a práticas culturais anteriores. Os intervalos na transmissão de uma ópera seguiram o protocolo das representações no palco]. Williams insiste: a oferta da radiodifusão antecede a procura; os media precedem o conteúdo. Depois da tecnologia pública (como o caminho de ferro e a iluminação eléctrica), veio a tecnologia privada, a privatização móvel.
Por mobilidade, entende-se o ir e vir e procurar novos locais. Uma maior mobilidade interna, a um primeiro nível, trouxe consequências secundárias em termos de dispersão das famílias e a necessidade de novos tipos de organização social. A rádio era um novo tipo de comunicação – as notícias de fora, de fontes inacessíveis. A nova tecnologia de consumo atingiu a sua primeira etapa decisiva na década de 1920. Aos novos bens, como o transporte privado, correspondeu a rádio, que trouxe notícias e entretenimento para o lar. Nessa altura inicial, a questão era a transmissão; depois, veio o conteúdo [aqui, discordo de novo de Williams: a cultura tecnológica era a troca de cartões entre emissores amadores que levavam a sua voz mais longe do que nunca. A rádio é uma tecnologia que começa por herdar isso]. Já na década de 1930, há avanços significativos na produção de conteúdos. A radiodifusão oferecia um todo social – música, notícias, entretenimento, desporto. A televisão seguiu etapas semelhantes à rádio.
Leitura: Raymond Williams (1974/2008).
Television: Technology and Cultural Form. Londres e Nova Iorque: Routledge, pp. 1-23
loading...
-
ComunicaÇÃo Em Rede
Gustavo Cardoso, Rita Espanha e Vera Araújo editaram agora um livro intitulado Da Comunicação de Massa à Comunicação em Rede. O primeiro capítulo, assinado por Gustavo Cardoso, é o mais teórico, logo o mais interessante para o leitor e o mais...
-
WILLIAMS - UM BOM MANUAL DE TEORIAS DOS MEDIA (I) Em 2003, era publicado um livro de Kevin Williams (Understanding media theory), que poderemos considerar um manual de tanto interesse para a área dos media e da comunicação como o são ainda os textos...
-
TELEVISÃO, TECNOLOGIA E MERCADO Retiro um pedaço do texto publicado por José Luís Garcia, no Público de 5 de Setembro último, O fogo é a mensagem. Notas para o debate sobre mediatização dos incêndios. Espero não descontextualizar, embora o...
-
ESCOLA CANADIANA DE COMUNICAÇÃO (I) Chama-se escola canadiana de comunicação à dos teóricos que destacaram os media como influenciando a sociedade (Harold Innis, Marshall McLuhan, Derrick de Kerckhove). Esta escola tem uma forte componente de determinismo...
-
DETERMINISMO TECNOLÓGICO Para Marshall McLuhan (1911-1980), os media são tecnologias que alargam as percepções sensoriais humanas. Ao propor que o meio é a mensagem, argumenta que o significado cultural dos media não reside no seu conteúdo mas...
Coisas e Coisas