Coisas e Coisas
MAL NASCIDA, UM FILME DE JOÃO CANIJO
João Canijo nasceu no Porto em 1957. A sua biografia indica que frequentou História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e, no início da década de 1980, começou a trabalhar como assistente de realização em filmes de Manoel de Oliveira, Wim Wenders, Alain Tanner e Werner Schroeter. Iniciou carreira como realizador em 1988.
Gostei muito do seu filme Noite Escura (2004), com Beatriz Batarda e Rita Blanco, entre outros, que conta a tragédia de uma família num bar de alterne. O seu proprietário entrega a filha mais nova a uma máfia russa actuando em Portugal, como forma de pagar uma dívida. Isto provoca a forte oposição da filha mais velha e da mãe contra o pai.
Agora, o filme Mal Nascida, a sexta longa-metragem do realizador, com argumento do próprio João Canijo e de Celine Pouillon, estreado em Portugal mais de um ano depois da sua apresentação no festival de Veneza em 2007, centra-se na personagem de Lúcia. Da sinopse do filme, lê-se que “Lúcia é uma mal nascida, uma mal amada, a eterna viúva do seu pai. Um grito antes de ser um corpo, enlouquecida, maltratada e humilhada, sobrevive enlutada com a lembrança do crime e da traição da mãe, grita a sua dor inconsolável para não dar descanso nem paz aos assassinos do pai. Vive na esperança desesperada do regresso do irmão para cumprir a promessa de vingar o sangue do pai”.
O filme conta com Anabela Moreira (no papel de Lúcia), Gonçalo Waddington, Márcia Breia, Fernando Luís e Tiago Rodrigues.
Para o realizador, a base de Mal Nascida foi Electra: “É o equivalente nas meninas do complexo de Édipo nos meninos e é uma personagem que há imensos anos, desde que a descobri, me fascina. Um dos meus primeiros filmes «infantis», chamado Filha da Mãe, já era uma versão adolescente e incipiente da Electra. E toda esta trilogia que começa na Noite Escura e à qual falta a posta do meio foi feita única e exclusivamente para chegar à Electra” (entrevista a João Antunes, Jornal de Notícias).
Sobre a ruralidade patenteada no filme, e na mesma entrevista, o realizador responde que "houve sempre uma razão não folclórica para escolher o meio ambiente onde se passavam as histórias. No Noite Escura, uma casa de alterne, que é um mundo de mentira e de representação, era o meio ideal para uma tragédia passar desapercebida". João Canijo quis contar a história clássica da família de Agamemnon e de Clitemnestra, pais de Electra, em três filmes (falta um, Piedade, ainda no papel).
Assim, “Mal Nascida é um filme que incomoda, por escancarar as portas de um país isolado, de ganância, crime e castigo, adultério e incesto, a cheirar a morte, de ausência de diálogo dentro das famílias. As aldeias são tão desertificadas, que vivem numa espécie de casulo, onde todas as emoções e todos os sentimentos explodem muito mais facilmente; qualquer pequena coisa faz explodir" (Diário Digital/Lusa).
Anabela Moreira, a Lúcia do filme, viveria mês e meio numa aldeia transmontana próxima de Boticas antes da rodagem como se fosse uma camponesa. Ela cuidou de vacas e de porcos e engordou 25 quilos para ficar mais monstruosa, carácter que se adequava perfeitamente à personagem.
O filme usa muitos planos curtos, com frequência de uma grande beleza visual apoiada por uma banda sonora muito agradável. Bastantes planos são filmados próximos das personagens, o que dá para perceber melhor os seus sentimentos. Psicologicamente, o filme é muito duro e a montagem feita repete várias ideias e tramas, penso que para o espectador interiorizar a violência. Aliás, em entrevista, o realizador confirma essa violência: "É o retrato de um país que, nas cidades, se julga que não existe. Que está escondido. Curiosamente, este ambiente rural de uma aldeia um bocado perdida é mais compreensível internacionalmente. A imagem da senhora com o lenço preto na cabeça não é só portuguesa, é também da Sicília, dos Balcãs" (Jornal de Notícias).
Hoje, ouvi parcialmente uma entrevista que ele deu a Inês Meneses, da Rádio Radar. Do que ouvi não gostei. Está-se perante um indivíduo pessimista (Portugal é uma invenção artificial, disse, como se não chegassem mais de oitocentos anos de existência), politicamente dogmático (defendeu os vinhos do Douro, verticais, contra os vinhos do Alentejo, horizontais, numa estranha defesa regionalista do norte contra o sul – e logo contra o Alentejo, que é uma região do país tão autêntica e esquecida como a de Trás-os-Montes que ele retrata) e contra algumas formas de fazer cinema (coloca-se a favor do cinema de autor contra o cinema de massas, como o de Call Girl ou o Crime do Padre Amaro, e que se percebe melhor no vídeo da Sapo, acima embebido). Julgo que ele está zangado contra o país e incapaz de o ver lucidamente.
Confesso que vim desapontado da sala de cinema, pela desesperança que ameaça tornar-se o padrão da cinematografia portuguesa de autor - e mais fiquei com a entrevista à rádio.
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