Ciência, academia, filosofia e retórica
Coisas e Coisas

Ciência, academia, filosofia e retórica



Estou aqui lendo o artigo que outras pessoas escreveram e em que divido a primeira autoria com um americano. É o primeiro artigo que sou primeiro autor e não escrevi a maior parte, isso me incomoda bastante. Cheguei a pedir pra mudar de posição, mas a chefa insistiu para que eu ficasse na frente pois isso seria melhor para mim, para ela e para todos os outros autores. A academia científica não é meritocrática, ela tem um aspecto social forte. Não me sinto o primeiro autor deste paper, não teria escrito as coisas com estas palavras, desta forma, nesta ordem. Minha identidade não está neste trabalho. Ele foi escrito principalmente pelos dois últimos autores, os verdadeiros "orientadores" do projeto. Mas eles já são velhos demais para ficarem como primeiros autores, eles querem ser últimos autores, pois em biologia o estatus do último autor como "orientador" vale muito.

Enfim, este artigo está prestes a ser submetido a uma revista científica de auto-nível na nossa área de pesquisa. Estava lendo agora a metodologia do mesmo e foi isso que me trouxe aqui a fazer este relato. O paper descreve, nesta seção, uma série de passos que parecem ter sido seguidos até que alcançássemos nosso objetivo final. A racionalização dos passos para a elaboração do trabalho na parte relativa à metodologia do artigo parece simples e clara, racional e precisa, prevista racionalmente e tendo objetivos alcançados. Mas tudo isso é uma enganação, tudo o que fizemos foi realizado de uma forma bem anárquica e sem muitas regras. A retórica está presente em toda atividade humana; parece que é preciso mascarar essa anarquia procedural dos outros pesquisadores e, então, temos uma metodologia falsa que parece perfeita; se tivéssemos mesmo parado e pensado racionalmente no que faríamos antes de realmente sentarmos para fazermos. O que acontece de fato é que sentamos em meio a brainstorms e é daí que o trabalho vai nascendo: da discussão, da argumentação e das coincidências entre o que pensamos, um modelo conceitual novo para descrever o mundo ou, mais especificamente neste caso, a biologia evolutiva.

O problema -- e também a beleza -- da ciência vem justamente do fato de que se propõe um projeto e recebe-se financiamento para ele sem que os cientistas realmente saibam o que vai ser feito. A ciência se constrói no fazer. Ela muda, os objetivos mudam, os dados mostram coisas que não imaginávamos ou não mostram padrões previamente imaginados. Mesmo a articulação dos conceitos se modifica entre o que pensávamos e o que passamos a pensar. A realidade não se adapta e não tem que se adaptar aos incompletos e simplísticos modelos que os humanos têm dela. A realidade é anárquica e complexa. Não há nada senão o caos. Os padrões observados no universo e na natureza são tênues e eles não se adaptam a uma idéia fixa, a um modelo fixo e quadrado que os humanos têm do mundo que os envolve. É por isso que a ciência sempre questiona seus próprios padrões, por isso ela sempre se renova. Ela é uma busca constante de uma regularidade que não existe, que existe apenas de forma aproximada, a ciência é uma descrição de uma regularidade irregular. Todos nossos modelos são falhos em um sem-número de aspectos e muitas vezes eles não permitem que os dados experimentais sejam nele assentados. Então a teoria tem que mudar, tem que se adaptar.

Enfim, exagero na filosofia. Só queria dizer que a ciência tem muito de retórica e muito do que descrevemos neste artigo é falso, de um ponto de vista metodológico. A metodologia foi feita em retrospecto, considerando o que tínhamos no final e o que deveríamos ter feito, desde o início, se já soubéssemos o que iríamos alcançar no ponto final ao qual chegamos e onde consideramos que tínhamos uma boa história para contar. Mas não sabíamos quando ou se chegaríamos ali; tentamos anarquicamente várias estratégias até chegarmos em nosso objetivo. Ouso dizer que nenhuma metodologia de nenhum artigo científico é verdadeira! -- ou que ela pode ser verdadeira apenas para muito poucos artigos científicos de nenhuma característica inovadora, apenas descritiva. Quando realmente se cria e se descobre algo, o método para fazer isso deve ser exploratório e anárquico. Eis a beleza da ciência.

E, depois, o cientista precisa imaginar o que deveria ter feito se, desde o início, soubesse o que encontraria no final. É isso que vai para a seção de metodologia de um artigo científico. Não é o que se fez, mas sim o que se deveria ter feito. A metodologia deveria ser escrita, inclusive, com condicionais e no futuro do pretérito.




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