Coisas e Coisas
Testemunha.
Quando chove felicidade
Tanta chuva nos enlouquece
Que esquecemos de encher os potes
para os longos dias de estio.
(Bento Nascimento)
Quando ela entrou no banheiro, eu estava prestes a cometer o ato. Eu não imaginava e nem podia imaginar que ela viria alí, àquele momento. Assim, me fiz de estátua para não ser notado. Fiquei quieto, no canto. Imóvel. Impenetrável. Ela foi rápida. Quando eu percebi tudo já tinha ocorrido. No chão, um filete de sangue escorria, lentamente. Suas pernas fraquejaram. Sentou-se. Ela soube cortar-se. Não era de nenhuma maneira, uma iniciante. Sua pele foi embranquecendo. Seus lábios arroxeando-se. Uma última inspiração e a cabeça pendeu para a esquerda. Eu queria sumir. A última coisa que eu esperava era ser testemunha disso. Pensei em fugir, mas sabia que ela precisaria de ajuda. Os momentos iniciais são sempre os mais confusos. Ao mesmo tempo, seria, no mínimo, constrangedor ser flagrado alí. Presenciando um momento tão íntimo. O momento da morte é a coisa mais íntima que temos. Nele podemos negar tudo. Nos arrepender de tudo. Maldizer tudo. Arrepender-se. Contradizer-se. Tudo é permitido. Estava entretido com estas divagações quando a percebi olhando pra mim.
- Você veio me buscar?
- Não. Sou apenas um passante. Não tenho pretensões.
- E agora?
- Não sei, acho que você deve esperar por alguma luz ou algo deste nível.
- Será? Não acho que seja assim tão simples para pessoas como eu...
- Pessoas como você?
- Que se cortam...
- Ahhh...
- De qualquer forma, eu já estou preparada.
- Sei... as chamas, o calor, o sofrimento... bla, bla, blá!
- Menos...
- Hummm... agnóstica?
- Também não.
- ...
- Mas você também não é o meu castigo não, né?
- Perdão? Não entendi.
- Tipo "O inferno são os Outros"... teremos que nos aturar pelo resto da eternidade...
- Ah, não, não... foi só uma coincidência...
- Detesto coincidências.
- Desculpe... eu não quis...
- Sei... presenciar este momento.
- Acredite! Não sou muito bom para lidar com as intimidades alheias.
- Até porque seria um voyeurismo bastante mórbido.
E com esta frase meio grosseira ela deu por encerrada a conversa. Foi em direção à porta. Mas, não conseguiu sair. Isso eu poderia ter dito a ela. Nos primeiros momentos é sempre difícil se afastar do corpo. Eu não sei explicar bem o que ocorre. Só sei que existe um sentimento de angústia profunda quando nos afastamos dele. Às vezes é mais fácil. Quando alguém o encontra, é fácil. Você segue até o IML. Vê seu corpo ser lavado. Vê as pessoas chorando... bom, quando há alguém para chorar. É como um ritual de desapego. Bastante educativo. Mas, o caso é que ela não conseguiu sair e, na volta, ficou me fitando. O clima ficou um pouco embaraçoso. Eu já comentei que ela estava nua?
- Quer dizer que você fica aqui pelo meu banheiro?
- Como?
- Não se faça de desentendido...
- Não, é que...
- Que?
- Eu não costumo falar sobre isso...
- Imagino... nunca ouvi falar de ninguém que tenha recebido uma mensagem: Oi, passei pra dar uma espiadinha no seu banho... sua avó, do além, manda notícias!
- É que, na verdade... eu também passei por isto... e....
-Passou por isto?
- É, eu...
- Você...
- Eu também morava neste apartamento.
- E...
- Faz tempo isso...
- E???...
- Eu também me cortei... mas não foi na pia. Foi na banheira. Eu tinha medo de bater a cabeça.
- Claro... faz sentido... ninguém quer ter duas causa-mortis em sua certidão.
Rimos. O embaraço passou um pouco. Bom, dentro do possível... para duas pessoas que estavam mortas... e nuas... Eu já comentei que também estava nu? Pois é... acho que é tipo uma "pegadinha" para com os suicidas. De qualquer forma, agora vocês já sabem. Nunca se suicidem nus... pode criar situações constrangedoras. Mas o caso foi que quando ela riu, junto comigo, foi como se algo se iluminasse ao meu redor. Algo parecido com uma inspiração profunda, que eu ainda me lembro como era, de quando eu respirava. Uma sensação que percorre o corpo. Acho que ela também sentiu algo, mas soube disfarçar. Com exceção de seus olhos que baixaram e pararam de me encarar. Então um outro tipo de embaraço surgiu. Mas era um constrangimento dos bons, daqueles que valem a pena passar. Então o riso se transformou em um sorriso. Então o sorriso se transformou em um desejo de se aproximar e fomos. Chegando. Pouco a pouco. Então o ruído...
- Meu namorado!!!
- Morto???
- Não... vivo!
- Merda!
Ele chegou. A encontrou. Nem gritou. Rasgou a camisa. Imobilizou os pulsos dela. Fez respiração boca-a-boca. Fiquei com inveja. Massagem cardíaca. Ele parecia bastante habituado com o procedimento. Acho que também não era a primeira vez dele. E então ela foi, aos poucos, diluindo-se. Trasformando-se em um tipo de vapor. Ainda tentei abraçá-la. Ela também tentou, acho. Ele pegou nos braços e saiu com ela pela casa. Ela se misturou com o vapor do chuveiro que, imaginem, estava o tempo todo ligado. Eu fiquei ali. Deitei na banheira. Senti falta de poder sentir a água quente em minha pele. Mas, desta vez, não me cortei.
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- Não importa se você escreve assim ou assado... - Será? - Eu acho que não. O importante é "o quê" você quer falar. - Mensagem? - É... - Não... não mesmo... - Por que não? - Muitas das vezes em que eu mais me comuniquei, nem sabia direito...
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...
- Vá, siga em frente... aproveite sua liberdade!
Como assim, liberdade? Como assim, aproveitar? Eu nunca soube que havia algo que não fosse esse lugar aqui. Meu mundo se resume a estas quatro paredes. Eu sei muito bem que quando o sol chega...
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