JORNALISMO GUERREIRO
O título da mensagem pode não ser justo mas é o melhor que me aparece quando se lêem os textos de Mário Mesquita e de Rui Araújo na edição do Público de domingo passado. São do melhor que eu li nos últimos tempos.
De Mário Mesquita, cuja ironia fina e brilhante perpassa em todo o texto, retiro algumas frases (espero não descontruir a sua proposta) acerca de uma reflexão de Régis Debray sobre o jornalismo contemporâneo. E também a nostalgia de um tempo, quando "os repórteres dispunham de dois ou três meses para escrever uma série de quatro ou cinco reportagens longas e desenvolvidas, e os diversos títulos da imprensa - republicana, socialista, monárquica, católica ou jacobina - reenviavam os seus leitores para mundos diferentes uns dos outros, em vez de confluirem num consenso em que só pequenas subtilezas de tom ou de pormenor marcam suaves distinções".
Debray, segundo a leitura de Mesquita, olha a comunidade dos jornalistas não como um espaço homogéneo, mas com um "alto clero", constituido pelas hierarquias, directores e editores, associados aos intelectuais assimilados (colunistas e colaboradores externos), e um "baixo clero", eventualmente representado pelo repórter no terreno ou pelo jornalista e técnico que não aparece no ecrã nem tem o nome nas páginas do jornal. Nos representantes da esfera mais elevada, "A homogeneidade dos dirigentes dos media seria explicável por razões de formação, de educação, de meio social e de modo de vida". Contudo, Debray opõe-se a esse modelo simplista de dicotomia, com os jornalistas a reagirem mal às directivas vindas de cima.
Rui Araújo, com um título visual mas dúbio Re-promiscuidades (Re como prefixo que significa Repetição ou como Resposta?), marca o princípio do seu mandato como provedor do leitor do Público. Ele não espera que façamos especulações sobre o que escreve; embora duro, quase violento, é transparente e objectivo.
Motivo da coluna de domingo passado? Os textos de Margarida Pinto Correia (MPC) no recente Lisboa-Dakar. O provedor acha que a coluna devia ser entendida como publicidade (e eu concordo). Ora, o administrador da empresa que patrocinou a ida e a cobertura de MPC entende diferentemente, ao escrever que as peças publicadas eram crónicas e não textos publicitários. Directo, Araújo diz: "As reportagens e as crónicas não servem para rentabilizar investimentos. A isso se chama publicidade ou propaganda comercial (legítimas), mas não pode ser confundida com informação, a qual se rege por normas e princípios de independência. O Provedor gostaria de ter conhecimento das referidas «reportagens assumidamente patrocinadas por marcas e assinadas por jornalistas»". E conclui: "O jornalismo serve para informar. A publicidade e a propaganda comercial servem para convencer. A mistura destes géneros chama-se promiscuidade".
Se em Mário Mesquita se detecta uma ironia fina e desarmante, o que facilita o diálogo e a maleabilidade sem se pôr em causa os princípios fundadores do jornalismo, Rui Araújo assume uma postura precisa mas dogmática. Parece não haver mundo para além do que escreve. Ele, tendo razão, estraga tudo com afirmações simplistas - todos nós conhecemos o que é promiscuidade. E o dogmatismo alarga-se quando ele invoca a cartilha, no caso o precioso "Livro de Estilo" do jornal. A minha questão é: não perguntou ao director do jornal porque razão deixou passar a coluna de MPC como jornalismo e não publicidade? E não indagou o mesmo junto do director comercial? É que, assim, toma o lado dos jornalistas mas não explica as nuances modernas do jornalismo de concorrência, em que a publicidade paga assume um papel cada vez mais poderoso face ao jornalismo. E, além disso, não indaga o que ocorre com a versão electrónica do jornal (eu não tenho assinatura; logo, estou a especular). Certamente, para assinantes, a coluna de MPC surge de igual modo como trabalho jornalístico. E não se alarga aos outros media, em que há product placement ou patrocínio indicado no começo e fim de cada episódio da série, da telenovela ou do programa de informação.
Um terceiro texto ajuda-me - na ideia de circulação circulante da informação, como escreveu Pierre Bourdieu sobre a contaminação das notícias de uns jornais sobre outros jornais. Colunista de geração mais nova que Mário Mesquita e Rui Araújo, João Pereira Coutinho (JPC) olha para a permanente queda de vendas dos jornais ao longo dos últimos anos, no Expresso de sábado. Ele lembra-se do tempo do seu avó, em que este demorava uma hora a ler o jornal, após o que começava as suas tarefas laborais. Hoje, a "forma de vida de um homem civilizado", como anota JPC, desaparece. Não há tempo para ler um jornal, serve a informação da internet. Resta, diz a concluir, uma de duas coisas: 1) os jornais servem públicos elitistas, 2) os leitores abraçam a linguagem cibernauta, que avacalha e enterra o jornalismo clássico.
Não gosto do verbo avacalhar, embora o significado dado pelo dicionário seja claro: desmoralizar, rebaixar. Mas a reflexão de JPC remete para outro universo que não o dos dois colunistas do Público. Ultrapassa-se o mundo dos jornais e entra-se numa outra dimensão, que não devemos negligenciar. Possivelmente, as peças editadas no Público indicam a postura dos últimos guerreiros que defendem o jornalismo construido e alicerçado ao longo dos 200 anos mais recentes. A profissão, como muitas coisas dadas por adquiridas, está muito possivelmente em questionamento. O trabalho precário, o uso de múltiplas tecnologias, os elevados índices de mortalidade de títulos (jornais, programas), a pressão concorrencial, entre vários outros factores, leva-nos a considerar múltiplos pontos de vista e não apenas um só.