Coisas e Coisas
The following story, by Cees Nooteboom
"A estória seguinte" ou "A próxima estória" (The following story, na tradução em inglês) é um livro do autor holandês Cees Nooteboom.
"A próxima estória" é um livro escrito em 1991 pelo holandês Cees Nooteboom, autor sempre cotado como candidato a nobel de literatura. A obra conta a estória de vida de um professor de línguas abordando em pano de fundo questões metafísicas e pós-modernas, onde o tempo não segue uma vertente exatamente linear. Entremeada à estória principal está a história do filósofo Sócrates, que se confunde com a vida do narrador-protagonista. Repleto de pensamentos genéricos, impressões sentimentais dos personagens sucedem-se numa atmosfera de non-sense psicológico que incitam à reflexão.Apreciação geral
É um dos melhores livros que li ultimamente e, se tive dificuldades em lê-lo por inteiro -- embora ele tenha apenas 100 páginas --, foi porque o livro inspirava-me constantemente. Em várias vezes em que parei meus afazeres para ter o prazer de ler esta obra de Nooteboom, não fui capaz de avançar sequer uma ou duas páginas, posto que sua maneira de escrever me inspirava e então eu me via obrigado a interromper a leitura para escrever alguma coisa. Mais do que tudo, não foi apenas o conteúdo do livro que me inspirou mas um tipo de "non-sense psicológico", como o próprio autor descreve, em que o livro é escrito e que identifico como um estilo de escrita similar ao meu (veja aqui ou aqui), certamente melhorado. É impossível negar que o autor não tenha um estilo próprio de escrita, embora seja difícil descrevê-lo com precisão. A obra conta a vida de um professor de literatura (grego e latim) que acorda um dia num quarto em Lisboa tendo dormido em Amsterdã. E esse fato inusitado trás a ele um sem-número de lembranças e reflexões que vão transformando o livro em um tipo de auto-biografia reflexiva, apoiada num texto repleto de sinceridade argumentativa e percepções sentimentais profundas sobre o mundo e a experiência humana, em meio à realidade do cotidiano. Em uma palavra: pós-moderno.
O romance, per seMais especificamente, o livro é escrito em primeira pessoa e trata da história deste professor e quatro personagens à sua volta. Herman Mussert é professor de literatura em um colégio onde há também dois outros professores, que mantém um relacionamento amoroso. Estes professores são Maria Zeinstra e Arendt Herst. O quarto personagem consiste na aluna chamada Lisa d'India que é inteligente e linda, interessada por todas as disciplinas e cuja qual todas as pessoas na escola são apaixonadas -- exceto o protagonista, como ele faz questão de frisar. Mas diz ainda: "
Toda linha de Latim que Lisa d'India tomava para o estudo começa a florir, viver, correr como um rio. Ela era um milagre e, embora eu ainda não saiba porque estou aqui, sei que isso tem alguma coisa a ver com ela." Embora diga que seu imperativo categórico próprio considere apaixonar-se algo proibido, Herman termina dizendo que se sente mais uma vez como fazendo parte do mundo das pessoas normais, posto que está apaixonado... por Maria Zeinstra. Para sua sorte, Lisa d'India tem um
affair com seu professor de educação física, justamente Arendt Herst, o que deixa a comprometida Maria Zeinstra razoavelmente livre para também ter um outro relacionamento furtivo. Jamais fica clara na obra se Zeinstra realmente gosta dele e o ama "Vá perguntar isso para sua mãe!", ela diz em certa ocasião, ou se o utiliza de certa forma a se vingar do marido [1]. E assim, os dois casais vivem as escondidas na escola e é com Maria Z que o autor se encontra um dia, num quarto em Lisboa, enquanto Herst tem outros afazeres. Ao longo do livro, o narrador vai nos contando a estória dessas suas paixões enquanto mistura um pouco de assuntos dados em suas aulas sobre línguas, literatura e mitologia. "
O mundo é uma referência cruzada sem fim" e à medida que vai contando sua hi(e)stória, Herman toma para si o alter-ego do grego Sócrates. E assim o relato avança até o momento em que ele dará sua última aula antes de se aposentar. Esta última aula é dada como uma metáfora de sua própria trajetória de vida, misturada com a história da morte de Sócrates, tal como relatada por Platão. O narrador comenta, sem qualquer modéstia: "
(...) eu podia, e eu o fiz aquele dia, fazer Sócrates morrer com uma dignidade que eles [os alunos] jamais esqueceriam por mais longa (ou curta) que fossem suas vidas." Ao fim desta última aula, Lisa d'India está chorando pelo professor que parte. Ela permanece na sala ao final e uma discussão se inicia, discussão esta que começa pela imortalidade da alma -- outro tema recorrente no livro -- e termina com discussões sobre seus relacionamentos. Discussões estas que são interrompidas quando Maria Zeinstra adentra o recinto. Lisa então se vai, deixando para trás um livro no qual a Sra Zeinstra encontra uma carta: "
'Você pode escolher', ela diz, 'ou você fica com a carta, e neste caso você nunca mais vai me ver, não importa o que esteja escrito. Ou então eu a parto agora mesmo em mil pedacinhos.'" E por mais culto que fosse nosso protagonista, ele percebe: "
Nenhum livro que eu tenha lido me preparou para uma situação como esta." Enfim, ele permite que ela corte a carta em pedacinhos e, a seguir, ela parece tomar a decisão de largar definitivamente Herst para ficar o protagonista. "
'A gente vai pra sua casa mais tarde', ela disse, 'e então eu vou ficar' (...) Ela não estava sugerindo, ela estava me avisando." No fim das contas, o autor volta a escola no dia seguinte apenas para encontrar Arendt Herst cheirando licor e com a barba por fazer. O professor de educação física o agride, gerando uma confusão na escola, e parte num carro com Lisa. O carro colide, Lisa morre, enquanto Arendt quebra as pernas. Depois de todo o acontecido, o autor confessa: "
Não, eu nunca mais ouvi falar de Maria Zeinstra e de fato, Herst e eu fomos despedidos, e o Sr e Sra Arendt Herst agora ensinam em Austin, Texas." Depois disso, o protagonista nunca mais deu aulas e passou a escrever guias turísticos que muitos holandeses acham indispensáveis para suas viagens ao estrangeiro [2]. Em seguida, ele pega um cruzeiro transatlântico onde encontra personagens interessantes, com quem se identifica, a contarem suas estórias de vida. Ele jamais lhes conta sua história, deixando-a apenas para nós leitores ficarmos sabendo.
O poeta, novelista e escritor de guias de viagem holandês, Cees Nooteboom. Nascido em Haia, 1933, tem vários livros publicados e é vencedor de inúmeros prêmios europeus de literatura. Em "A história seguinte" o autor usa e abusa de conceitos pós-estruturalistas e desconstrutivistas, gerando uma atmosfera psicológica onde a compreensão é formada de forma difusa, porém sensível e, finalmente, brilhante.A obra, aspecto geralA obra se inicia com o autor refletindo sobre sua identidade num quarto de hotel em Lisboa, há alusões a lugares e ruas e palavras em português. Há dois capítulos: no primeiro o autor discorre sobre Lisboa e Amsterdã e conta a maior parte de sua vida no colégio [3]. Nesta primeira parte há excessivas alusões à mitologia, clássicos da literatura, filosofia e interessantes incursões livres sobre linguagens e ensino. Tais assuntos são chamados ao texto quando em meio à estória e normalmente são interessantes e de digestão leve. O capítulo pode ser todo entendido como "reminiscências esparsas e despropositadas" da vida de um culto professor de letras, em fins de carreira. Via de regra, o autor está sempre a defender um entendimento do mundo de forma poética e literária, contra um tipo de compreensão excessivamente científica da realidade, algo que tira Maria Zeinstra do sério.
Já no segundo capítulo, o narrador está num navio, um transatlântico que parte de Belém (Portugal) e chega em Belém (Brasil), relembrando algo cíclico, como um eterno retorno -- como aponta um dos personagens desta parte. Neste navio, embora esteja claro que estejam presentes um enorme número de pessoas, há apenas um pequeno grupo delas que de certa forma inexplicável se identificam, permanecendo juntas. Não há sequer alusões a outros membros da embarcação. O narrador revela:
"Qualquer um acostumado a manter uma classe com trinta alunos sob controle aprendeu a ter uma percepção rápida. Um garoto, dois homens velhos, dois homens da minha própria idade. A mulher ali parada (...) Sabíamos de cara que pertencíamos a um mesmo grupo." E então o livro passa a contar sobre as estórias de vida dessas pessoas e sobre detalhes da viagem, sempre sobre uma aura de
non-sense psicológico e onde o autor apresenta lembranças e pensamentos esparsos e não lógica ou temporalmente ordenados sobre sua própria vida. A parte final do romance já descrito acontece em meio a esta viagem de barco.
"Meus sonhos sempre tiveram uma semelhança absurda com a realidade, como se mesmo em meus sonhos eu não pudesse criar nada de novo, mas agora as coisas aconteciam ao inverso, agora era minha vida que parecia um sonho.""E toda noite (...) um de nós contaria sua estória, e eu os conheceria e não conheceria, e cada uma dessas estórias seria o fim de uma outra, ainda maior." O garoto e o padre e o espanhol e o acadêmico chinês contaram suas estórias, dia após dia. O livro termina bem ambíguo, talvez com a morte do autor, talvez com o navio ancorando talvez no Brasil, com o sujeito retornando à sua cama e fazendo uma alusão de que tudo não passou de um sonho. Ainda não sei exatamente qual a conclusão final a que cheguei e outras críticas que li na internet deixaram-me ainda mais na dúvida. Para realmente sabermos teríamos que esperar uma próxima -- e ainda maior -- estória.
Citações interessantes"A tecnologia significa pouco para mim (...) mas algumas máquinas tem uma beleza nelas próprias, ainda que eu jamais vá admitir isso em público" pag 13
Aqui vem a idéia de que o poeta é um sujeito que não está ligado na tecnologia e ama o lirismo do mundo, longe do tecnologismo.
"Isso é outra coisa que aprendi: quando as mulheres querem alguma coisa, elas são capazes de mobilizar forças que homens, apesar de sua conhecida força de vontade, não são capazes de igualar." pag 20
Acredito que aqui o autor esteja fazendo um elogio à mulher e colocando-a antiteticamente como o "Outro" ou algo que ajuda a definir sua própria identidade masculina.
No primeiro capítulo há a frase:
"Estou feliz que os outros tenham ido embora e que eu precise contar apenas a você a minha estória, ainda que você mesmo esteja nela." pag 25
Esta frase é bastante interessante e ela pode apenas ser compreendida depois que o livro tenha sido lido por inteiro, ou seja, mostra que ele não tem uma ordem cronológica perfeita ou precisamente orientada. [4] A estória de Herman não foi contada aos outros viajantes do navio e ele está feliz que eles tenham ido embora para poder agora contar-nos sua estória. A idéia de fazermos parte da estória muito provavelmente representa o fato apontado pelos
descontrutivistas e pela
crítica pós-estruturalista de que é o leitor que dá sentido a -- e portanto, participa ativamente de -- qualquer narrativa. Frequentemente o alter-ego de Nooteboom dialoga com o leitor tratando-o como "você" e ao longo da narrativa temos de fato uma ligeira impressão de fazermos parte da obra. Simplesmente brilhante!
Na mesma página, logo abaixo, mais um tipo de paradoxo que caracteriza a literatura contemporânea e que é facilmente analisável considerando as teorias literárias do fim do século XX:
"Somente a palavra escrita existe, tudo que alguém precisa fazer por si mesmo é sem forma, sujeito à contingência sem rima ou razão. Isso gasta muito tempo. E se termina mal, o mestre não está certo, e não há como cruzar as coisas. Por isso escreva, Sócrates! Mas não, não ele, e não eu também." pag 25
Sabe-se muito bem que o filósofo Sócrates não deixou nenhum tipo de conhecimento escrito e tudo que se conhece sobre vem dos escritos principalmente de Platão e outros gregos da época. O autor aqui, a meu ver, mistura prosa com poesia, desiste claramente de produzir um sentido simples e claro através de sua frase e termina escrevendo seu relato e dizendo que não escreverá, um
paradoxo claro. Eis aí talvez um dos pontos altos da literatura moderna, segundo criticismo padrão.
Do narrador à Lisa d'India:
"O Latim é a essência, o Francês a idéia, Espanhol o fogo, Italiano o ar (claro que eu disse éter), Catalão a terra, e o Português é a água."
E ela responde:
"E sobre a água e essas coisas, isso me soa um pouco gratuito, não? Não muito científico, de qualquer forma." pag 28
Nesta obra cabe sempre às mulheres atiçar no protagonista e narrador o senso da ordem e do científico. O livro contém uma boa caracterização ideológica das personagens femininas e o autor sempre se apresenta a elas como sendo um ser mais lírico e sonhador do que estas. Aqui pode-se talvez dizer que o papel tradicional da mulher como frágil e sonhadora tenha sido invertido. Outra vez: pós-moderno.
Diálogo entre o autor e Maria Zeinstra:
"(...) eu perguntei: 'Cê sabe que horas são?'
Ela apontou o grande relógio emoldurado a madeira na parede oposta, e sua face imediatamente assumiu a expressão irritada daqueles que detestam ver seu pacto sagrado com o universo sendo quebrado." pag 30
Momento em que Maria Zeinstra foi mais lírica do que o narrador. Ela irrita-se por ter sido ligada novamente ao mundo da correria e dos relógios mostrando horas.
Do autor para Maria Zeinstra, quando ela utiliza uma palavra antes desconhecida pelo protagonista -- shuttered -- para chamar a atenção de um aluno mal comportado. O narrador reflete:
"Shuttered. Mas que palavra! Ainda mais quando dita desse jeito tipico do norte da Holanda. As luzes [da sala de aula] se apagaram de novo [para que o seminário continuasse], mas eu sabia então que aquela vaga emoção que ela já havia invocado em mim havia sido repentinamente promovida a amor."
"Esta mulher está me ensinando novas palavras! Não há dúvidas sobre isso, eu a amo." pag 35
Amar envolve admirar o outro de certa forma.
"A vida é um monte de merda que continua aumentando e aumentando, e a gente precisa carregá-lo por aí conosco até o fim." pag 38
"Ela fez uma pausa. De repente ela parecia ter quatorze anos. 'Você acredita em vida após a morte?'
'Não', eu respondi sinceramente. Eu não estou nem mesmo certo de que existimos, deu vontade de dizer, e então eu fui e disse.
'Ah, sai dessa.' E isso soou muito norte-holandês. Mas de repente ela me pegou pelas lapelas.
'Vamos tomar um drink.'" pag 43
Destaque em negrito feito por mim.
Algumas discussões finaisCom relação à crítica psico-analítica do texto, é interessante notar como às vezes a personagem de Zeinstra confunde-se com a personagem de Lisa d'India, ao que parece, na memória difusa do narrador. A idéia de que sua vida agora parecia um sonho é perfeitamente compreensível pelo surrealismo do texto.
É também interessante notar que mesmo tendo convivido com Zeinstra, Lisa e Herst há tanto tempo e -- tendo partido em viagem transatlântica sabe-se lá quanto tempo depois de tudo ter acontecido --, a memória do que viveu e as coisas que pensa quando está aqui ou ali estão sempre voltando a tratar dessas pessoas que foram importantes em sua vida. Referências cruzadas da biografia de um personagem inexistente. Isso leva-me também à reflexão de que as pessoas com as quais vivemos jamais de fato morrem ou desaparecem de nossas vidas, posto que sempre há algo que nos irá fazer lembrar delas de alguma forma. Elas estarão participando de nossas vidas. A nossa própria vida não é nada que senão uma referência indireta à vida daqueles que amamos e que representam muito para nós.
I can't stand daylight.===
[1] Frase encaixada depois de ler uma outra crítica da obra, por Scott Esposito. Isso fica claro no livro e eu não havia comentado nesta postagem.
[2] Como o verdadeiro autor também escreve guias, resta a dúvida sobre o quanto do relato não será auto-biográfico. E pensando literariamente: quais os limites entre autor e personagem em uma obra explicitamente auto-biográfica ou outra que não se pretende assim. Qual a parcela de auto-biografia de todo o relato? Alguma vez conseguiremos ser ainda que um pouco imparciais ao escrever um livro, ou principalmente, ao escrever-mo-los em primeira pessoa? Por que é mais difícil escrever uma obra de ficção em primeira pessoa do que em terceira? Para nos dar a precisa imagem do personagem, não precisa ser o autor, um ator? Não precisará transformar-se no personagem para se fazer crível? (Sobre este assunto dá-me agora um pouco de medo do João Ubaldo à época em que ele escreveu "O diário do farol")
[3] Outra crítica diz que as duas partes do livro consistem provavelmente nos dois últimos segundos de vida do narrador e que isso soa plausível. É fato que a questão da morte está relacionada ao fim do livro e que às vezes se tenha a impressão de que a garota que o espera esteja de um "outro lado da vida". Mas não penso que isso fique claro e acho que a teoria dos dois segundos é assaz especulativa e não me transparece em absoluto na leitura da obra. De fato, é uma discussão irrelevante.
[4] Scott Esposito, em sua crítica encontrada em [1] diz exatamente que o livro deve ser lido e relido. Confesso que comecei a escrever esta postagem quando havia terminado de ler o livro, mas cheguei praticamente a relê-lo inteiro para terminá-la (enquanto estive de férias na Tunísia) e ainda voltei nele algumas vezes para tentar clarear melhor esta postagem.
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