PORTUGAL SEGUNDO AGUSTINA
Coisas e Coisas

PORTUGAL SEGUNDO AGUSTINA


Agustina Bessa Luís é uma mulher já velha (nasceu em 1922), li que está doente. Mas o seu livro Fama e segredo na história de Portugal, agora publicado pela editora Guerra e Paz, é dos textos mais lúcidos que li sobre o nosso país e a sua história.

O livro atraiu-me primeiro enquanto objecto gráfico, que é muito belo. Depois, li-o num só tempo, não do começo para o fim mas saltitando de capítulo em capítulo, procurando confirmar o que sabia da História do país.

Nem tudo o que ela escreve se considera exacto. Isso explica-se pelo facto de ser romancista e, assim, ser uma historiadora ocasional que mistura o facto com a ficção, como o confessa na página 61: "Não é do meu entendimento e obrigação adiantar alguma coisa à História de Portugal, já escrita e comentada por pessoas doutoradas para isso. No que me aparento com os cronistas é na tentação de romancear e meter diálogos fictícios onde só se ajustam secos relatos".

Divide o livro em doze capítulos, a que chama óperas, designação que vale muito. A ópera tem dramatismo, música, teatralidade, personagens verdadeiras e fictícias, vencedores e trabalhadores com pouca produtividade, fado e aparências. Escreve sobre homens de que se conhece pouco, como Viriato, que ela afirma não ser oriundo da Serra da Estrela mas de Zamora ou mesmo celta e que os guerreiros romanos enalteceram como militar para justificar o prolongamento de guerras e as recompensas financeiras do esforço, e Afonso Henriques, nascido malformado das pernas e reabilitado talvez porque trocado por outra criança pelo que se compreende a sua luta contra a mãe.

Fala também da homossexualidade de D. Sebastião e do infante D. Henrique, e do distinto investimento de um e de outro, o primeiro embarcando numa aventura desastrosa e dramática para o país, o segundo contribuindo quer para o desenvolvimento do país quer para a sua riqueza pessoal. Não manifesta paixão pela Ínclita Geração, mas chama a atenção para o papel de duas mulheres: Filipa de Lencastre e Isabel, a filha de tipo meridional (p. 66), ao invés dos quatro filhos, mais próximos da matriz fisionómica da mãe inglesa. Outras mulheres analisadas por Agustina são Leonor Telles, com capítulo próprio, e Carlota Joaquina, mulher de D. João VI. Dela, define a escritora: "Carlota Joaquina é desses exemplos de mulheres feias que se virilizam pelas decepções do seu sexo" (p. 134). Logo depois, escreve que a rainha "moía o juízo" a D. João VI, não louco mas frágil, que fugiu de Portugal para o Brasil temendo o exército francês de Junot e regressando aqui, deixando o grande país do outro lado do Atlântico pronto para a independência.

De Salazar não se comove nada, ela que é uma mulher do norte e de ideias conservadoras. Chama-lhe o "senhor Esteves", porque os jornais noticiavam a ida a variados locais após a sua presença: "Salazar esteve..." (p. 187). E surpreende quando fala da sua família e confessa a aproximação desta a Afonso Costa: "Desde criança que eu ouvia o nome de Afonso Costa pronunciado com emoção e louvor. E a república pairava como um lábaro por cima do candelabro da sala de jantar" (p. 166). Mas mostra-nos a resolução do pai dela: "No meio do seu silencioso e quase fanático afonsismo, meu pai teve uma ideia genial: mandou-me educar pelas doroteias". No capítulo sobre Afonso Costa, a escritora opõe-no a Sidónio Pais, num dos melhores capítulos do livro. Afonso Costa e Sidónio Pais encarnam, se quisermos, dois tipos de sociedade populista, do mesmo modo que D. Carlos e o seu primeiro-ministro João Franco, que haviam feito um pacto: se um abdicar ou pedir a demissão, o outro também se afastaria. Após o regicídio de 1908, João Franco disse e cumpriu: "Acaba-se tudo e eu também" (p. 159).

As figuras públicas retratadas, alguns dos mais proeminentes dirigentes do país desde Afonso Henriques - ou mesmo antes, com Viriato -, são despidas de preconceitos, de ideias formadas à priori, e julgadas na sua condição de humanos, fracos na carne, hábeis nas traições, na cobiça e nos objectivos comerciais. São retratos como a pintura realista nos habituou séculos atrás, mostrando os defeitos, as tendências, os vícios e algumas virtudes, sem o actual photoshop que abrilhanta as faces e os contornos. É, se quisermos, um livro impiedoso e mordaz. Mas é também um texto sobre o delírio e a melancolia, características genéticas dos portugueses, segundo o pensamento dessa nascida em Vila Meã, em Amarante, onde as mulheres costumam falar e observar os detalhes com sentido pragmático mas menos elegância. Além de chamar a atenção para a nossa proverbial desatenção (o habitual não ver longe, ao contrário de Duarte Pacheco, ministro de Salazar, homem de grande visão, e que se repercute hoje nas indecisões quanto ao novo aeroporto a servir Lisboa, por exemplo) (p. 185), para o espírito solitário e não de comunidade do país (a decisão na solidão e sem amigos e o desconhecimento do que pensavam intimamente D. Sebastião, Salazar, João Franco, no que resultou em grandes tragédias) e para o aceitar preconceitos (Salazar teve um berço humilde, o que não se perdoa, como se faz hoje a Cavaco Silva) (p. 182).



[imagens de Zamora com a estátua e a praça de Viriato inseridas na mensagem em 10.4.2010]



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