Coisas e Coisas
PINTURA
O QUE UNE AS EXPOSIÇÕES DE PAULA REGO, DÜRER + CRANACH E A PINTURA ESPANHOLA DO SÉCULO XIX, ACTUALMENTE EM DESTAQUE EM MADRID? O QUE AS SEPARA?
A pintura espanhola é incitada pelo tempo, pelo poder político, pela estética, a representar os momentos mais importantes da história do país, os seus momentos de glória. Diz o pequeno catálogo: "cuja qualidade formal [das 95 pinturas e 12 esculturas] é equiparável ao de outras destacadas escolas europeias do seu tempo". Há uma relação directa com o Museu do Prado, fundado em 1819 e agora com uma ala nova, precisamente onde está patente a exposição desde a semana passada, com entrada gratuita nos primeiros dias.
Os pintores seguiram Goya (com três obras patentes), fonte inicial de inspiração, com enormes telas apenas possíveis de instalar em paredes de museu, com cores muito vivas, de um grande verismo. Frederico de Madrazo, Eduardo Rosales, José Moreno Carbonero, Mariano Fortuny e Joaquín Sorolla são alguns dos principais nomes. Destaco o quadro de Francisco Pradilla, Cortejo del bautizo del príncipe don Juan, hijo de los Reyes Católicos, por las calles de Sevilla, obra de 1910 (já no século XX, mas integrando a exposição). A cena é pública - isto é, um acto privado da realeza tornado público. Com o colorido da multidão - no palanque (aristocracia local), nas varandas, na guarda de honra, no povo na rua. Falta apenas o som das pessoas e da música, conquanto as cores sugiram polifonias [imagem retirada da Wikipedia].
A pintura e gravura de Dürer e Cranach estão num outro plano, a da fixação da imagem reproduzida (a gravura), com cenas da vida de Cristo e do cristianismo, numa afirmação do protestantismo de Lutero [lembra o filme em projecção nestes dias, Elizabeth, de Shekhar Kapur, com Cate Blanchett, Geoffrey Rush e Clive Owen, em que uma Isabel I, protestante, defronta Filipe II, católico]. Dürer torna-se importante por apoiar essa afirmação religiosa, por a fixar no texto e, especialmente, na imagem. A exposição na Fundación Caja Madrid é mais significativa que a do Museo Thyssen-Bornemisza, dada a quantidade de pequenas gravuras que ilustravam livros, uma das escassas formas de ilustrar os leitores. Quanto tempo demoraria a leitura de uma das pequenas imagens, consideradas piedosas? A cultura erudita alicerçava-se aí, mas não sei o impacto nas classes mais populares. A geometria e a representação das novas formas de fazer a guerra (em que as armaduras de aço são determinantes) aparecem nas gravuras como dois outros campos explorados. Ao esforço científico junta-se o da actividade da primeira indústria cultural: a reprodução mecânica da imagem. Há, pois, um duplo significado - a religião, a arte mecânica.
Já o mundo representado por Paula Rego é um distinto mundo interior. Não é místico mas psicológico e melancólico, de descrição de traumas pessoais (e colectivos), como assinalei ontem. O fundo (enquadramento) é nascente na época de Dürer + Cranach e importante na pintura espanhola do século XIX mas não tem o mesmo sentido em Paula Rego. Aqui, cada elemento para além da(s) imagem(ns) central(ais) é do domínio do simbólico. A representação de um animal em Dürer ou Cranach e na pintura espanhola faz parte da história, da cena, da paisagem; em Rego lê-se como complemento, oposição ou simples sinal como se fosse uma assinatura.
Para além destes objectos (textos enquanto totalidades, enquanto exposições), independentes e autónomos entre si, há a junção num tempo, o da exposição ao público. Logo, para o visitante que passe nos vários locais, há um cruzar de linguagens, cada uma delas apegada a um tempo histórico e sociológico.
Em Paula Rego, não existe o domínio do belo e do harmonioso como na pintura espanhola ou o rigor matemático dos gravadores alemães, mas o elogio do feio, do horror. É certo que a morte (cenas em Dürer sobre Cristo e os cristãos, Fusilamiento de Torrijos y sus compañeros en las playas de Málaga, de Antonio Gisbert, 1887-1888) aparece estetizada: a morte é simultaneamente feia e bela, tormentosa e horrível mas igualmente equilibrada.
A produção identificada nestas exposições reflecte a qualidade da cultura europeia - alemã, espanhola, portuguesa (inglesa) - ao longo dos séculos. Se o século XVI mostra a expansão política, económica, cultural e científica e o século XIX espanhol é, na pintura, a (re)afirmação de uma cultura e de um país, a obra de Paula Rego assume os medos, as fobias modernas, o psicologismo do privado. As cenas públicas da pintura espanhola - quase cenas universais à escala do seu país - tornam-se privadas, íntimas, quase de pesadelo individual na pintora portuguesa. Melhor: o público (séculos XVIII-XIX), de afirmação dos Estados, transmuta-se em privado (do retrato em Dürer e na pintura espanhola) mas atinge o paroxismo em Rego. O privado é o único domínio nesta pintora. Com os seus animais, monstros e mulheres feias. O universo masculino das outras exposições muda-se aqui para o feminino.
Se quisermos ver de outro ângulo: o retrato do homem é do domínio público, o da mulher é privado. Onde as dores são silenciadas ou partilhadas num espaço pequeno, como ontem escrevi.
Observação 1: a pintura de José de Madrazo (La muerte de Viriato, jefe de los lusitanos, 1807) conta a história do assassinato de Viriato, chefe dos lusitanos. Na explicação, como se pode ler abaixo, trata-se de um episódio na história de Espanha. Nos manuais de história portuguesa, Viriato é ensinado como antepassado dos portugueses. Não haverá forma de se estabelecer genealogias através de história comparada?
Observação 2: a segurança na nova ala do Museu do Prado parece a entrada num aeroporto à espera de um ataque terrorista. Malas, relógios, cintos e outros pertences do visitante passam pelo mesmo sistema de segurança de raios X que num aeroporto. Os seguranças podem apalpar um visitante "suspeito". E obrigar a tirar sapatos com uma placa metálica (medo de bomba?). O prazer de fruir um museu começa a desvanecer-se. Pior que esta segurança só mesmo o museu judaico em Berlim, com polícias de forte porte atlético.
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