Hoje, de manhã, estava a olhar distraidamente televisão, quando vi que, no programa da manhã da TVI, Manuel Luís Goucha entrevistava Jerónimo de Sousa, secretário-geral do Partido Comunista Português. O tema era o homem para além do político. A primeira coisa que reparei foi na maquilhagem de Jerónimo de Sousa, necessária para quem vai à televisão mas nunca usada quando se vê o militante comunista numa sessão na rua ou no parlamento. Depois, vi projectar fotografias dele no serviço militar, a família com mulher e filhas, ele a falar de uma visita a uma fábrica depois de 1974, em que lhe chamaram doutor e engenheiro, a explicar a sua visão do comunismo diferente dos regimes realizados na China, na Rússia ou em Cuba.
Dei comigo a reflectir como a política se faz hoje também nos programas populares de televisão, nos
talk-shows. Surge uma faceta mais humana, contam-se histórias da vida pessoal, há momentos de quase confissão, ele calmo e sorridente, muito distinto do que se vê nos comícios de bandeiras e de palavras de ordem, a assistência bate palmas. E, sem reparar nisso, lembrei-me da peça actual da companhia de Luís Miguel Cintra, a Cornucópia,
Pílades, de Pier Paolo Pasolini. O texto inaugural do catálogo da peça, assinado por Luís Miguel Cintra, fala do princípio da década de 1970, quando em Portugal militares e outras pessoas procuraram fazer a revolução, e dos anos prévios, a que chamou de resistência política. O actor e encenador evoca esse tempo e compara-o quarenta anos depois, dizendo que existe agora um sistema político chamado democracia que é uma mentira. Texto longo de seis páginas, Luís Miguel Cintra tem oportunidade de comparar o filme de Pasolini,
Evangelho Segundo São Mateus, com a pintura de Fra Angelico, no que respeita a figuras idealizadas, raras e puras.
Luís Miguel Cintra confessa a sua devoção por Pasolini e, agora, por Fra Angelico, por causa das nuvens do fundo do palco da representação de
Pílades. E o actor e encenador vibra com o cenário (Cristina Reis), uma caixa óptica, com uma porta a meio do fundo onde, por vezes, entra muita luz e a radiosa Atena (Rita Durão). Esta quis virar o curso à história de Argos, apoiando o liberal Orestes (Duarte Guimarães) contra o radical Pílades (Dinis Gomes), que viu o seu exército debandar para a cidade que conhecia um desenvolvimento económico e social espantoso. Electra (Sofia Marques), irmã de Orestes, que amara o rei seu pai, era agora fascista.
Pasolini misturou dois tempos, o clássico dos gregos (Ésquilo) e o da Itália pós II Guerra Mundial onde cresceu o consumismo. Atena e as suas Fúrias fizeram, na minha leitura, um bom trabalho de propaganda e convenceram os montanheses e alguns operários a descerem até Argos para observarem de perto como a cidade estava a prosperar. Cintra, para tornar mais complexa a peça, juntou-lhe excertos de duas peças menores de Pasolini (
Um Peixinho;
Projecto para um Espectáculo sobre o Espectáculo), que provoca dispersão mas, ao mesmo tempo, um encanto estético inesquecível. Ou quando o travesti (Isaac Graça) canta em
play-back uma música italiana da época,
Ma l'Amore no, cantado por Alida Valli, no final do muito mas muito longo primeiro acto. Alguns espectadores não resistiram e foram-se embora ao intervalo, numa sala longe de estar cheia.
De quando em vez, o coro, como na tragédia grega, aqui sempre colocado na parte de trás do palco, interpela os amigos rivais (Orestes e Pílades), enquanto as quatro principais personagens (Orestes, Pílades, Electra e Atena) percorrem o palco todo e descem nas escadas laterais, onde falam e, até, brigam, culminando com uma violação do radical sobre a fascista. Pasolini escreveu esta peça radical (e incompreendida, apesar de publicada na revista
Nuovi Argomenti) em 1966, durante um mês em que esteve de cama por causa de uma úlcera. Nessa altura morria o dirigente do Partido Comunista Italiano, Palmiro Togliatti. Por isso, cruzei a ideia dos dois líderes comunistas, o italiano e o português.
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