Coisas e Coisas
O ORGULHO DOS POVOS
Desde ontem, quando li a reportagem de Alexandra Lucas Coelho no Público sobre um livreiro de Cabul, Afeganistão, que não páro de pensar na entrevista e no entrevistado.
Sha Mohammed e a sua livraria Shah M. Books inspiraram o livro de Asne Seierstad, O livreiro de Cabul, esclarece a jornalista no lead. Na página da direita, aparece o homem que se define como sendo uma mistura de árabe, uzbeque e chinês. Diz que adora Shakespeare, que ensina a ver a sociedade à nossa volta. Das contas que eu fiz da leitura da peça, ele já terá vendido 22 mil livros daquele autor, em 34 anos! Claro que esteve preso e a sua livraria fechada com os russos e os talibans, pelo que a loja esteve aberta menos anos.
A sua memória é preciosa, ele que é mais velho do que eu apenas cinco anos. Diz que no tempo do rei Zahir Shah, até aos anos de 1970, o Afeganistão era um país moderno, com professores alemães, americanos e franceses na universidade de Cabul, as mulheres vestiam mini-saia e não cobriam o cabelo e eram cerca de 30% da população universitária.
Além da memória, há a coragem. De vencer as adversidades. Preso pelos russos, obrigado a usar barba pelos talibans, descrê do actual presidente e do apoio ocidental, pois este não chega a quem dele precisa: o povo afegão. Deste, e em especial da jovem geração, Mohammed tem orgulho: lê, estuda e é honesta.
O texto de Alexandra Lucas Coelho, mais uma outra peça que escreveu há dias sobre burkas e vestidos que ela comprou quando esteve recentemente no Afeganistão, lembrou-me um artigo de há anos (também no Público?) sobre uma mulher que tinha um antiquário em Bagdad. Com a guerra já a decorrer, a mulher dizia que continuava a abrir todos os dias as portas da sua loja, acto corajoso quando o poder político incentivava ao abandono do trabalho por parte das mulheres. Nós nunca mais soubemos dela: será que sobreviveu? Ou desistiu e foi-se embora de Bagdad? Ou morreu?
O olhar do livreiro de Cabul para a máquina fotográfica da jornalista é, ele próprio, uma esperança de dias melhores. É o orgulho dos povos, que podem perder tudo mas mantêm a dignidade. Eu prezo essas qualidades.
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