Coisas e Coisas
O Melhor Livro Brasileiro de 2006
Num texto publicado no Estadão, entitulado "À Espera da Peneira do Tempo", o crítico José Castello falou a respeito de alguns caminhos da literatura nacional, citando lançamentos contemporâneos e procurando encontrar um retrato da literatura atual, no meio de tantas obras tão diferentes. Dentre os livros mencionados, o crítico cita "Mãos de Cavalo", obra do escritor gaúcho Daniel Galera e refere-se a ela como uma obra que projetava "a imagem de um futuro conservador". A expressão dá uma estranha sensação de que o livro de Galera é um livro que não muda em nada o cenário da literatura brasileira. Lembro que na época achei estranha essa observação e prometi a mim mesmo escrever um texto explicando porquê o termo 'conservador' não pode não ser aplicado a obra de Galera, apesar da forma do romance ser uma forma conhecida. Agora que se encerra o ano e que virou uma mania de todos escrever um lista de melhores, acho que chegou a hora de falar sobre "Mãos de Cavalo", que para mim foi o melhor livro da literatura brasileira lançado no ano passado.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que parte da minha avaliação positiva se dá por causa das referências pessoais que a obra coloca e que envolve uma geração inteira (aliás, a minha geração), algo que para muitos, inclusive pessoas com mais de trinta e cinco anos talvez, não diz nada. Eu sei o que era ter uma Caloi Cross, o que era jogar videogames - inclusive os mais desconhecidos, como o Phantom System -, também tive um tênis M2000 e sei mais um monte de coisas que estão descritas na história e que se referem à minha geração. Então, em alguns trechos, paro a leitura e sinto-me invadido por uma nostalgia deliciosa, lembranças de um tempo muito feliz que são recordados a cada citação feita. Para quem não sabe o que representam essas referências, tudo isso pode não passar de uma capa pseudo-atual para histórias comuns, o que não é de maneira alguma. Galera consegue descrever com bastante sensibilidade a formação de uma geração e é o primeiro que vejo que conseguiu realmente construir um retrato literário desta geração. Mas é claro que o livro não se sustenta somente por isso.
"Mãos de Cavalo" é um típico livro de transição. A transição do chamado romance tradicional para o romance de um tempo ainda não muito bem entendido, classificado de vários modos. Evito usar o termo 'pós-moderno', visto que normalmente este termo está associado a um tipo de narrativa onde o autor procura negar o prazer da compreensão imediata, um texto que exige tempo, dedicação e atenção. Mas no livro de Galera, embora haja uma compreensão imediata dos eventos que são narrados, há também uma série de questões que o texto esconde. Não há aquela fragmentação da narrativa, tal qual num romance chamado pós-moderno, mas de certo modo, à medida que o leitor avança na leitura do livro, ele vai juntando algumas peças e percebendo um complexo cenário que vai se montando. É interessante isso porque de modo geral, o que vemos na literatura brasileira contemporânea é um anseio de se romper com a tradição, um anseio de escrever algo inovador, uma necessidade constante de desestruturação de um cenário artístico através da interrupção do que está em curso, de iniciar tudo novamente. O resultado? Há muito por aí da chamada pós-modernidade que não passa de má literatura embebida em 'novidade', autores que usam a desculpa de romper com a tradição para apresentar somente alterações na forma do romance e não fazem quase nada para transformar o conteúdo - isso quando o romance tem algum conteúdo. E o livro de Galera chama atenção justamente por fazer o inverso: apanha a fórmula tradicional do romance de formação para transformar o conteúdo de um assunto que parecia já estar exaurido, a violência, além de misturá-lo a outros temas, como culpa e redenção.
No livro, fala-se da violência não por usar palavrões, digressões sem sentido ou eventos chocantes, relatados da forma mais natural possível. A violência está sempre por baixo, em pequenos eventos na formação do personagem Hermano. Por causa disso acho que "Mãos de Cavalo", ao contrário de ser classificado como conservador, é um livro que transforma (e muito) a literatura brasileira. Embora faça uso das descrições realistas e preocupa-se com a densidade psicológica do personagem, é um livro tão ou mais importante do que "Feliz Ano Novo" de Rubem Fonseca, por exemplo, porque fala de consequências desse consumo da violência na atualidade. Ou seja, depois da literatura brasileira nos apresentar a violência chocante dos grandes centros urbanos, o livro mostra que é hora de ir um passo além no assunto e começar a enxergar as consequências dessa violência a que nos acostumamos. Seria muito superficial, como ainda procuram alguns autores, apenas relatar a violência, algo que não causa impacto a quase ninguém, tamanha a enxurrada imagens de violência que são despejados sobre nós todo dia. Portanto, ao invés do livro tentar falar com crueza da violência, chocando-nos tal como fez Rubem Fonseca, o livro fala de uma sociedade que se habituou à introduzir a violência no dia a dia, de um jeito banalizante. O autor mostra que a geração que consumiu a violência hollywoodiana de Stallone e Charles Bronson na TV, é ao mesmo tempo uma geração covarde, que se esconde ou se omite da violência real das ruas. Apresenta isso nos diversos eventos que faz parte da formação de Hermano - desde o passeio de bicicleta que desafia os obstáculos dum modo irresponsável, aos esportes radicais, como o alpinismo - e mostra um personagem que não sabe lidar com os resultados disso tudo. Portanto, uma geração contraditoriamente acostumada com a violência e pacificadora.
Pensando sob esse ponto de vista, o final que é aparentemente uma redenção do personagem, somente esconde questões que estão implicadas nesse tema e que apontam para outros: redenção e culpa. Afinal, as conseqüências das escolhas do personagem não são apagadas por um simples ato, um ato que parece resolver tudo, mas que mostra mais uma vez um personagem que não sabe lidar com as consequências de suas escolhas. Há uma grande tristeza no trecho final onde Hermano reencontra Naiara anos depois e percebe que o tempo havia passado, seu ato de aparente redenção não muda isso e nem desfaz as escolhas que fez. Em sua vida ainda estarão Adri, Nara e Renan - ou seja, o presente ainda estará ali. Essa sensação é reforçada quando no último capítulo a narrativa retorna ao passado e fala do momento em que Hermano toma as decisões que moldarão sua vida dali para frente. E são essas decisões que permanecerão, o que soa um pouco pessimista.
Nota-se também que Daniel Galera foi influenciado por autores contemporâneos de língua inglesa, tais como David Mitchell, Jonathan Lethem e Jonathan Franzen. Não somente porque o autor é o tradutor de Jonathan Safran Foer, mas também porque o tema culpa/redenção já foi bem explorado por lá, como por exemplo na obra-prima "Reparação" de Ian McEwan. E isso é bastante saudável para a nossa literatura. Tais obras são interessantes, elogiadas e premiadas e, para alguns, fazem com que a tão anunciada morte do romance se torne cada vez menos crível. Para nós, portanto, faz abrir um novo caminho, um caminho que muitas vezes faz a crítica torcer o nariz (como se metalinguagem, fragmentação e desconstrução fossem o supra-sumo de alguma coisa), mas um caminho importante. Num primeiro momento, é o antigo romance, composto por uma história bem contada, que faz com que o leitor eventual se interesse mais por livros e passe a ser um leitor costumaz. E um livro que consegue interessar assim o leitor, com tanta riqueza no desenvolvimento de seus temas, deve ser sempre elogiado.
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