"Um Defeito de Cor" - o Problema do Negro no Brasil
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"Um Defeito de Cor" - o Problema do Negro no Brasil


O grande problema ao se ler "Um Defeito de Cor", de Ana Maria Gonçalves, é que tudo o que o livro tem de grandioso e sublime, é apresentado dum modo sutil, numa estrutura tradicional. Por seu enredo com personagens psicologicamente bem construídos - o texto apresentando não somente as ações, mas também o pensamento da personagem Kehinde -, por suas referências históricas que situam o leitor num tempo específico e por sua narrativa de modo linear, o leitor poderia facilmente confundir o texto com um texto novelesco. Pior ainda, alguns leitores poderiam classificar o livro como literatura feminina - feminina no pior sentido possível, aquele sentido de um texto limitado pela experiência de sua autora -, o que definitivamente o livro não é. O segredo para perceber a profundidade que o texto assume, apesar de suas características tradicionais, está no título. A expressão racista e repugnante tem um tom poético, de tal modo que quase nos esquecemos de que se trata de um termo discriminatório. Tal como o título, as questões levantadas pelo texto estão tão envolvidas pela beleza literária do texto que às vezes leva o leitor, ao fechar o livro, a pensar "como era horrível a vida de uma escrava, ainda bem não é mais assim".

Se fosse para apontar um tema que resume a obra, o tema seria o racismo. E aqui é que entra a justificativa para a estrutura do texto. Como apresentar um tema tão complexo e contaminado por discursos panfletários dum modo atual? Escrever uma obra assim utilizando um tom moralista ou de denúncia, certamente enterrariam o romance no meio da já enorme pilha de textos sobre o assunto. Usando a literatura para exemplificar, seria como tentar reescrever um "Germinal" de Zola usando a história do Brasil, soaria algo patético. Sendo assim, o ponto de vista da personagem é, não somente o mais belo modo de fazer isso, mas é também o mais eficiente. Notamos, ao ler "Um Defeito de Cor", que na maior parte do texto a personagem Kehinde está tentando compreender a lógica do mundo ao seu redor. E a incompreensão serve para se distanciar do tom meramente denunciatório. Um exemplo claro disso é quando sua Sinhá a batiza como cristã e recebe outro nome: sem compreender direito o que isso significa, Kehinde continua com seus costumes religiosos e sua identidade, mas se ajusta à vontade das autoridades (seu senhorio e os líderes religiosos) como modo de se adaptar as regras. Ela chega a conclusão que se adaptar às regras traz inúmeras vantagens.

A tentativa de mutilação da identidade, que é uma das piores características da escravatura, é apresentada ao leitor o tempo todo e causa um enorme incômodo ver Kehinde tendo que se adaptar às situações que lhe são impostas, de modo a ainda se reconhecer como um ser humano distinto. No início da narrativa, Kehinde tem medo de ser transportada ao outro continente por causa de lendas que ouviu de que os homens brancos a transformariam num carneiro para ser devorada. De certo modo, o que vemos nas páginas seguintes, é justamente isso: o ser humano, utilizando suas características mais repugnantes, desumanizando outro ser humano, transformando-o num animal.

Somente o fato de este ser o primeiro livro brasileiro sobre a escravidão que fala a partir do ponto de vista de uma escrava já é um sinal claro de que o tema é ainda bastante pertinente e que deveria ser melhor explorado. Como disse no início, o leitor pode fechar o livro sem se dar conta de que o livro traz à baila um assunto da atualidade. Infelizmente, ainda é regra as escolas de ensino básico e médio nas aulas de história darem a entender que o problema da escravidão no Brasil foi resolvido com uma penada da princesa Isabel. Não vemos alunos serem incentivados à reflexão das conseqüências de anos de escravidão no país e de a abolição ter ocorrido tão tardiamente.

Mas voltemos novamente a estrutura narrativa tradicional utilizada. Infelizmente, a escolha que o autor faz por certo modo de narrar faz com que muitas vezes ele seja subestimado. Foi assim com Érico Veríssimo e o fato do livro da Ana não estar relacionado na lista de melhores do ano do prêmio Jabuti faz crer que isso ocorre novamente. No entanto, a capacidade de atingir o leitor com um texto ao mesmo tempo envolvente e relevante, é que fez com que o autor seja hoje reconhecido por seu talento. Tenho certeza que o mesmo acontecerá com a Ana e seu livro. Somente uma escritora bastante talentosa consegue fazer com que um leitor, que hoje divide sua atenção também com outras mídias, se debruce sobre um texto de mais de 900 páginas e consiga avançar de maneira tão fluída, sem perder o interesse pela narrativa. "Um Defeito de Cor" tem esse poder, contrariando toda a lógica do mercado editorial atual, que costuma desconsiderar narrativas longas. Sem qualquer exagero é possível dizer que "Um Defeito de Cor" tem os requisitos necessários para entrar no cânone da literatura nacional como um clássico.



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