Coisas e Coisas
O Herói, de Caetano Veloso
Nasci num lugar que virou favela
Cresci num lugar que já era
Mas cresci a vera
Fiquei gigante, valente, inteligente
Por um triz não sou bandido
Sempre quis tudo o que desmente esse país
Encardido
Descobri cedo que o caminho
Não era subir num pódio mundial
E virar um rico olímpico e sozinho
Mas fomentar aqui o ódio racial
A separação nítida entre as raças
Um olho na bíblia, outro na pistola
Encher os corações e encher as praças
Com meu guevara e minha coca-cola
Não quero jogar bola pra esses ratos
Já fui mulato, eu sou uma legião de ex mulatos
Quero ser negro 100%, americano,
Sul-africano, tudo menos o santo
Que a brisa do Brasil briga e balança
E no entanto, durante a dança
Depois do fim do medo e da esperança
Depois de arrebanhar o marginal, a puta
O evangélico e o policial
Vi que o meu desenho de mim
É tal e qual
O personagem pra quem eu cria que sempre
Olharia
Com desdém total
Mas não é assim comigo.
É como em plena glória espiritual
Que digo:
Eu sou o homem cordial
Que vim para instaurar a democracia racial
Eu sou o homem cordial
Que vim para afirmar a democracia racial
Eu sou o herói
Só Deus e eu sabemos como dói
==
Achei interessante essa crítica política do Caetano, a música
herói faz parte do disco "
Cê", ao qual assisti o DVD neste fim de semana e que me agradou bastante. Se entendi bem, a música toca em vários aspectos interessantes da desigualdade social e racial.
"Sempre quis tudo o que desmente esse país
Encardido
Descobri cedo que o caminho
Não era subir num pódio mundial
E virar um rico olímpico e sozinho"Nessa frase, Caetano critica a mentalidade do brasileiro que quer sempre ser rico, sem pensar como ficará quando chegar lá. O negro da música percebe a estupidez deste pensamento e quer algo muito melhor si e para nós.
Um olho na bíblia, outro na pistolaTambém ressalta Caetano a intolerância e o instinto de guerra dos conservadores, principalmente daqueles de moral religiosa.
Encher os corações e encher as praças
Com meu guevara e minha coca-colaGostei também desta parte que mistura esquerda com direita, Guevara e coca-cola. Concordo plenamente com Caetano sobre o fato de que
o ideal de igualdade social não é contraditório ao capitalismo. É preciso que tentemos alcançar a igualdade dentro de um regime capitalista, uma vez que
a abertura de mercado e o liberalismo econômico já se provaram saudáveis para os regimes democráticos.
Não quero jogar bola pra esses ratosExcelente mensagem! O sonho do negro comum é tornar-se rico através de habilidades que só ele tem; mais comumente: jogar futebol. Mas toda a cartolagem do futebol é feita de brancos e os negros tornam-se símbolos e marionetes daquela corja de ratos que são quem realmente controla as regras do jogo.
Quero ser negro 100%, americano,
Sul-africano, tudo menos o santo
Que a brisa do Brasil briga e balançaMais uma vez a crítica à mentalidade do brasileiro que quer alcançar o posto alto para poder pisar dos debaixo. O negro não quer ser aquilo que o brasileiro médio sonha em ser, ou seja, um sujeito rico e poderoso.
Depois do fim do medo e da esperança
Depois de arrebanhar o marginal, a puta
O evangélico e o policial
Vi que o meu desenho de mim
É tal e qual
O personagem pra quem eu cria que sempre
Olharia
Com desdém total
Mas não é assim comigo.Então o negro fala de si mesmo e percebe, num auto-vislumbre, que se olharia com total desdém caso se visse de fora; na visão de um brasileiro mediano. Ele quer dizer assim, penso eu, que os negros têm preconceito com os próprios negros.
Mas o negro, enfim, diz que ele mesmo não é assim. O negro começa a falar de si segundo a mentalidade mesquinha do brasileiro normal e depois diz que ele mesmo não é assim, dando continuidade à mentalidade revolucionária que o acompanha desde o início desta canção-poema-manifesto.
É como em plena glória espiritual
Que digo:
Eu sou o homem cordial
Que vim para afirmar a democracia racialO negro assume então seu compromisso com a democracia racial, dizendo-se cordial por isso.
Eu sou o herói
Só Deus e eu sabemos como dóiDepois de execrar a bíblia e os evangélicos, o negro divide com um deus as agruras de enfrentar o preconceito todos os dias. Eu que não sou negro -- mas não sou branco também -- sinto por vezes na pele essa dor que o negro diz sentir. É muito triste e penoso sofrer preconceito e saber que esse preconceito vem de pessoas idiotas, mas que se precisa delas para viver. É preciso educar as pessoas sobre a democracia racial e social e este manifesto é um ponta-pé na mentalidade ultrapassado do brasileiro em relação a esse aspecto.
Viva Caetano!
loading...
-
A ópera Do Malandro, O Filme
Já o filme da "Ópera do Malandro" não tem a mesma desculpa do Orfeu Negro. Foi produzido em 1986 tendo como elenco peças grandes do elenco nacional à época (e ainda hoje). Edson Celulari representa o malandro, Ney Latorraca o policial tigrão, Cláudia...
-
Orfeu Negro
Recentemente resolvi que deveria assistir pelo menos uma quantidade razoável de filmes clássicos que todos já viram menos eu. É o que venho fazendo neste momento. Comecei por assistir um filme brasileiro que alguns franceses haviam comentado comigo...
-
Padrões Gerais Nacionais
Eu tava conversando com o francês gente-boa outro dia. Não lembro o nome dele, mas ele é chegado da galera e já foi no Brasil, diz que o melhor amigo dele é brasileiro e tal. Sem dúvida ele conhece um pouco da nossa cultura. Ele morou também nos...
-
Trabalho
No Brasil, como se não bastasse as pessoas serem extremamente mal remuneradas em grande parte dos trabalhos, elas quase sempre são sobrecarregadas de serviço. Aqui na Europa, todas pessoas são bem remuneradas e não têm muito o que fazer -- quando...
-
Uma Boa Análise
No artigo de ontem do caderno “Prosa & Verso” do jornal “O Globo”, intitulado “O Fetichismo da Palavra”, o poeta Alexei Bueno escreve de forma clara e brilhante sobre a visão de alguns à respeito da literatura atual no Brasil. Alguns...
Coisas e Coisas