Coisas e Coisas
Henrique IV, Parte 3
A representação tem um início lento. Parece que assistimos a um conjunto de exercícios experimentais ou de aquecimento. Henrique, o tradutor, anda à volta de um círculo, repetindo números e fórmulas. Quando a mulher Iolanda assoma, percebe-se que estava a sonhar, melhor, a ter um pesadelo. Ele estava a traduzir Shakespeare, ao mesmo tempo que fazia traduções comerciais e industriais (como empilhadoras e autoclismos) para viver. A economia desempenha um papel primordial – segurança social, recibos verdes, internet – quadro de um casal atual com precariedade de emprego. Dela, sabe-se ser educadora de infância, atividade que a leva a sair de casa cedo e a dar recomendações à empregada doméstica.
Lentamente, a peça mostra um triângulo amoroso. A empregada Miriam tem sonhos de ser modelo, de passar nas passereles, mas precisa de um pequeno investimento para a compra de vestuário. O tradutor a dias não consegue satisfazer essa dificuldade. A rapariga mete-se num buraco quando faz uma sessão fotográfica destinada a promovê-la e ela descobre que queriam pôr as imagens ousadas na internet. O que leva Henrique a recorrer a Jacaré e, após pagar um valor, fica com a cassete comprometedora. Esta mais tarde servirá para usufruto dele e de Iolanda.
Tudo se complica quando aparece Falsfatt, herói de Shakespeare, apenas visível para Henrique, o tradutor. Sir John Falstaff foi personagem fictícia em três peças de William Shakespeare. Nas peças
Henrique IV, parte 1 e parte 2, ele é companheiro do príncipe Hal, futuro rei Henrique IV. Mais um delírio do jovem. O herói isabelino mostra-se arrogante e pede um adiantamento para se atualizar no vestuário. Mais uma vez, Henrique recusa, o que torna a sua vida diária um grande conflito.
A representação tem um elemento atraente: as luzes em objetos (copos), o corpo físico redondo no fundo do palco (que permite construir algumas ideias cénicas) e as corridas dos atores lembram a pintura construtivista, composta por elementos geométricos, retangulares, cónicos e circulares. Como se o teatro fosse uma junção à pintura, uma arte menos performativa que aquela. O texto é poético, nem sempre próximo da situação real que pretende retratar, mas agradável de ouvir. Os atores usam as letras sibilares com grande acento, porque falam assim ou porque a encenação assim o pretendeu.
O texto do autor (Jacinto Lucas Pires, também encenador) no programa não ajuda à compreensão do texto representado, porque fala de uma situação (história) que nada tem a ver com a peça. Nem se pode dizer que seja um metatexto. Excertos de
Henrique IV, partes 1 e 2 de William Shakespeare, cenografia e figurinos de Sara Amado, desenho de luz de Nuno Meira em colaboração com Filipe Pinheiro. Interpretação de Ivo Alexandre, Luís Araújo, Paula Diogo e Anabela Faustino (a representação inclui o hino
O Nata Lux de Lumine (Thomas Tallis), com interpretação Chapelle du Roi e direção de Alistair Dixon. Público do teatro Carlos Alberto culto mas severo (parcimonioso) nas palmas.
Do diálogo entre tradutor e personagem de Shakespeare:
Falstaff: Qual é o vosso nome, condição e origem?
Henrique: Henrique… tradutor… hã… Mas, que raio, porque é que… Eu é que devia estar a...
Falstaff: À fé de Deus que tendes aqui uma boa casa, e rica.
Henrique: Não é muito grande, mas… obrigado.
Falstaff: Poderá Vossa Senhoria emprestar‑me mil libras para eu me equipar?
Henrique: O quê? O senhor saberá, por acaso, o que é a minha vida? As dificuldades que eu tenho, segurança social, recibos verdes, conta da net e… o que eu tenho de passar todos os dias, a traduzir merdas – merdas mesmo – instruções de montagem de enroladores mecânicos de estrume, coisas assim – para que me paguem uns trocos, umas migalhas de...
Falstaff: O quê? Um rapazola tão novo e já a pedir? Então não há guerras? Não há empregos? Não fazem falta súbditos ao Rei?
loading...
-
Quis Porque Quis Fazer Jornalismo
Depois de muitos anos, duas mães se reencontram num colégio, no dia de votação de uma eleição qualquer. - Maria Helena? Você não é a mãe do Paulo Henrique, o amigo do Arturzinho, meu filho, nos tempos aqui do colégio? - Claro! Sou a mãe do...
-
"a Ronda" De Arthur Schnitzler
Com base na obra de Arthur Schnitzler, no Teatro de Turim, dez diálogos onde as personagens vivem encontros e várias formas de se relacionar com o outro, tudo isto vivido a diferentes tempos, num espaço comum. Na Tasca da Consuelo as histórias multiplicam-se,...
-
As Raposas
Luísa Cruz desempenha muito bem o papel de Regina Giddens na peça As Raposas, de Lillian Hellman. Não é um registo autobiográfico da escritora, apesar dela ter observado uma realidade semelhante na sua infância, a dos jogos de poder dentro da família....
-
Como Queiram
Não vira no teatro de S. Luís, Como Queiram, de William Shakespeare (1599 ou 1600), encenado por Beatriz Batarda. Por uma grande sorte, apareceram os bilhetes que queríamos no teatro Carlos Alberto. Foi um consolo para o espírito estar naquela sala....
-
Henrique PousÃo
Estive hoje a observar com atenção a sala que o Museu Soares dos Reis dedica a Henrique Pousão, pintor nascido em 1859, há cento e cinquenta anos, e falecido em 1884, de tuberculose. Oriundo de Vila Viçosa, matricular-se-ia na Academia Portuense...
Coisas e Coisas