Fiquei meio triste de ter dado duas críticas razoavelmente ruins de filmes brasileiros nos últimos posts abaixo. Estou feliz agora, portanto, de poder vir falar bem -- e muito bem -- de um filme brasileiro. Venho de assistir "A engraçadinha", filme baseado na obra "Asfalto Selvagem" de Nelson Rodrigues. Com Lucélia Santos no papel de Engraçadinha, o filme é simplesmente espetacular. Fiquei impressionado com as manhas e artimanhas inteligentes forjadas por Engraçadinha para conquistar seu primo Sílvio -- interpretado por Luiz Fernando Guimarães -- e convencê-lo a se casar consigo ao invés de casar-se com sua noiva.
O filme é particularmente excepcional em termos da trama, muito bem bolada, e da caracterização dos personagens. Todos os personagens principais, a saber: Engraçadinha (Lucélia Santos), seu pai (Cláudio Corrêa e Castro), seu primo (Luiz Fernando Guimarães) e a noiva de seu primo (Nina de Pádua) são muito bem caracterizados e as atuações dos atores são também impecáveis. Trata-se de uma obra de Nelson Rodrigues, afinal. E foi muito bem adaptada ao cinema.
Como se não bastasse, a ordem na qual a história é contada é muito interessante e faz o espectador pensar ora uma coisa, ora outra. Com diálogos completos, sinceros e profundos, eu gostei muito do filme! O filme discute também de certa forma a questão do aborto e apresenta um relato interessante sobre o assunto.
Mais do que tudo, o filme apresenta muito claramente um retrato da cultura sexual brasileira dos anos 50/60. Discute a questão da virgindade feminina, mostra como a sociedade da época via como importante este fator, discute incesto, relação homossexual e a principalmente, ao meu ver, apresenta os problemas que uma sociedade moralista pode proporcionar ao espírito humano. Os personagens sentem-se extremamente culpados por suas ações libertárias de um ponto de vista sexual. Engraçadinha perde sua virgindade com o primo para que ele se case com ela; ele não poderia fazer "isso" com ela e deixá-la desamparada. O primo então se sente compelido a tal, o pai não sabe o que faz posto que o primo não é primo, é irmão; a noiva tem impulsos homossexuais; e o primo corta fora seu pênis por culpa de ter transado com a -- agora ele sabe -- irmã.
De acordo com dados da wikipedia, o romance original de Nelson Rodrigues que deu origem ao filme parece ter sido publicado sob o nome de Alfalto Selvagem, em 1959. Vendo a liberalidade sexual existente no mundo de hoje quando comparado ao mundo desenhado nesta obra -- e que se apresenta nítida e claramente como uma bela representação do que acontecia à época, conseguimos ter uma idéia de como os valores sexuais de nossa sociedade atual atingiram de fato um ideal libertário que era apenas sonhado há 50 anos atrás. Se por um lado, fico infeliz de ver como eram as coisas há poucas décadas atrás, alegra-me perceber que a humanidade está caminhando para uma maior dimensão do que seja a liberdade sexual. E isso provavelmente também está ligado a uma maior liberdade em diversos outros aspectos de nossa vida cotidiana. E foi justamente por me atiçar esse tipo de reflexão, dentre outros já expostos, que simplesmente achei magnífica esta obra do cinema brasileiro, lançada em 1981. Parabenizo a todos que dela participaram.