Coisas e Coisas
CINEMA EM TERESA MENDES FLORES
Cinema e experiência moderna, de Teresa Mendes Flores, foi inicialmente uma tese de mestrado. Docente na Escola Superior de Comunicação Social e bolseira de doutoramento, a autora abarca duas ideias centrais: a imagem-movimento de Deleuze e o impacto filosófico e antropológico do filme de Dziga Vertov, O homem da câmara de filmar (1929).
Os inventores do cinema tiveram uma preocupação científica central, a da análise do movimento. Logo depois, o cinematógrafo viria tornar banal qualquer assunto ou tema. O cinema aparece como a vista oferecida pela montra de uma loja ou grande armazém. Com uma distinção: a montra da loja pode seduzir e levar o indivíduo a entrar e ver mas não comprar; com o cinema, o espectador absorve o que vê. A arcádia, no trabalho de Walter Benjamin, entende-se como um dispositivo com uma sucessão de montras.
O livro é, assim, sobre o dispositivo fixo que é o ecrã. O cinema é diferente da pintura, pois esta exige somente uma moldura e não necessita do dispositivo tecnológico de recepção. E o tempo não é matéria da pintura, com o espectador a observar sem o limite de tempo imposto pelo realizador na passagem dos planos do filme.
É esse tempo que castiga o filme que Vertov critica. O cinema é independente da cultura literária e expressa o homem novo e a nova sociedade industrial de operários. Engajado na política soviética, o cinema surge como máquina revolucionária, ligada às vanguardas que acreditam no poder transformador da arte e rejeitam o velho cinema burguês dos cine-dramas psicológicos, escreve Teresa Mendes Flores. Fundador do movimento Kinoks, o tema do filme de Vertov é o do homem que sai para as ruas de uma cidade e se dispõe a filmá-la. Vertov dá relevo às máquinas: transportes, fábricas, telecomunicações. E ao voyeurismo dos lugares: o comboio que passa, uma rapariga que se levanta e veste, o homem da câmara a mudar de lente. Em suma. trata-se de um ensaio sobre a mobilização cinematográfica do olhar, sobre o olho-mecânico que observa (e memoriza e arquiva). Em que a montagem aparece como preocupação central: como cortar um plano? Onde colocar o intervalo? No final do filme, volta-se à sala de cinema, ao dispositivo de projecção.
Ecrã dentro do ecrã, dispositivo que revela a natureza desse dispositivo, o filme de Vertov prepara o regresso de Teresa Mendes Flores à análise de Deleuze, núcleo do terceiro capítulo. Deleuze ancora-se em Bergson: as imagens relacionam-se com o corpo, a memória e o pensamento. Bergson, aliás, funda o conceito de imagem-movimento, que Deleuze desenvolve. Segue a autora de Cinema e experiência moderna: no pós-Segunda Guerra Mundial, as situações e personagens de um filme dispersam-se, perde-se a centralidade da acção, o modelo de perseguição no cinema americano transforma-se em modelo de caminhada sem motivo ou destino.
Observação: há uma grande ligação entre os conceitos desenvolvidos pela autora e João Mário Grilo, autor a que me referi em recente mensagem. Este foi orientador da tese de mestrado daquela.
Leitura: Teresa Mendes Flores (2007). Cinema e experiência moderna. Coimbra: MinervaCoimbra
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