Coisas e Coisas
Cartas da Guerra e as minhas memórias
Escrevi aqui, a 16 de dezembro de 2005, sobre o livro
D'Este Viver Aqui Neste Papel Descriptivo de António Lobo Antunes. De entre outras linhas, escrevi que se trata de "um livro de amor que decorre com a guerra colonial como pano de fundo. Os aerogramas (ou cartas) que o alferes miliciano António Lobo Antunes mandava para a mulher Maria José Fonseca Costa Lobo Antunes são a expressão do amor à distância e relata o dia a dia da vida de um militar destacado em Angola durante a guerra, no caso dele entre 1971 e 1973. O livro lê-se como um romance pleno de acção, mesmo que muitas das cartas contenham versões minimais de outras".
Depois, destaquei os temas principais das cartas: "a saudade da mulher (e da filha que vai nascer aqui em Lisboa quando ele está lá longe, em Gago Coutinho - o nome de então de uma vila angolana perto da fronteira com a Zâmbia). Daí que as cartas comecem sempre com «minha jóia querida» e acabem com «gosto tudo de ti». Outra linha constante é a referência à sua necessidade de escrever, ele que debutava e seria bastante mais tarde reconhecido como grande escritor. Escrevia ele a 5 de Abril de 1971 (p. 117): «Tenho continuado a história, agora a caminho da página número 70, vamos a ver se consigo que fique boa». A 21 de Maio do mesmo ano (p. 171): «Entretanto lá vou empurrando a história para a frente». No dia 8 de Julho (p. 232) escrevia: «Acabada a primeira parte, eis-me a trotar na segunda»".
O atraso de correspondência era outra constante da vida diária do alferes médico Lobo Antunes, nascido em 1942: "Desde 4ª feira passada (hoje é 3ª) que não recebo notícias tuas e que nada sei a teu respeito" (6 de Abril de 1971, p. 118). Muitas vezes, considera que o amor entre ele e a mulher está a chegar ao fim, pois ela não lhe responde. Mas das suas cartas percebe-se que ela se queixava do mesmo. Cada aerograma demorava muitos dias, devido aos circuitos complexos de correio no interior de Angola. Hoje, tais lamentações não seriam possíveis, graças ao telemóvel e, em especial, a internet [há poucas semanas, uma reportagem de televisão mostrava os soldados destacados em missão internacional no Afeganistão com uso de internet e envio de imagens fotográficas. O tempo de demora reduziu-se a instantes]. O dia a dia sem motivos novos levava a um remoer constante das mesmas ideias. Mas o autor não assumia que nelas pensava todos os dias: «Há muito que não falo da criança [a mulher ficara grávida quando ele embarcou para Angola], mas tenho pensado muito nela» (26 de Abril de 1971, p. 140). Lobo Antunes abordara a situação no dia anterior. Depois, é o seu conselho quanto ao nome da criança a nascer; querendo uma rapariga, propõe o nome de Maria José, o que virá a acontecer".
Um tema marginal nas cartas à mulher, mas que retoma com alguma regularidade, é o da compra de bebidas brancas a preços baixos: "A propósito de oficiais, cada um tem direito por mês a 3 garrafas, duas de uísque e uma de conhaque, de marcas estupendas, a preços de cerca de 100$00. [...] Embora não goste de nada disso (e tenho pena) ficamos cheios de alcoóis para os visitantes do nosso quimbo" (carta de 29 de Março de 1971, p. 109. Quimbo em umbundo, a língua da região, significa casa). A 20 de Janeiro de 1972 (p. 338), dá conta de uma alteração: "já não vendem mais garrafas aos senhores oficiais, por aqueles preços convidativos". E, por mais de uma vez, conta que militares de visita a Portugal serão transportadores de algumas dessas garrafas.
Retenho ainda da leitura do livro o conhecimento que ele adquiriu com o capitão Ernesto Melo Antunes, comandante de uma das companhias do seu batalhão (certamente aí colocado depois de, em 1969, ter sido o único oficial das Forças Armadas portuguesas a fazer parte de uma lista de oposição ao regime, ele que seria um dos oficiais do 25 de Abril de 1974 e que assumiu uma posição de liderança, com o Documento dos Nove, uma posição moderada após a radicalização à esquerda do regime em 1975 e 1975. Melo Antunes, homem culto, emprestava livros e revistas como o
Nouvel Observateur e jogou xadrez com Lobo Antunes, ensinando-lhe várias entradas, como o livro indica. Por outro lado, a tomada de consciência política (apesar de, numa primeira fase, parecer favorável à situação, vai-se distanciando da posição oficial).
Retomo este texto que resultou da minha leitura de
D'Este Viver Aqui Neste Papel Descriptivo há já quase 11 anos, a propósito do filme
Cartas da Guerra, do cineasta Ivo Ferreira, filme quase documentário assente nesse livro de António Lobo Antunes de aerogramas enviados à mulher. Filme a preto e branco, sempre com imagem magnífica de João Ribeiro, com leitura de cartas pelos narradores e intérpretes Miguel Nunes e Margarida Vila-Nova. O filme complementa visualmente a narrativa escrita, mostrando a paisagem da Lunda Sul, com o enorme rio Chiumbe a surgir de quando em quando (julgo ser ele, pois ouve-se o seu nome, embora associado a uma pequena vila, esta bastante a norte do local onde Lobo Antunes esteve, perto da então designada Gago Coutinho). Estão no filme a prisão em que se tornou o aquartelamento da companhia liderada por Melo Antunes, com trincheiras cavadas, por se temer o assalto dos guerrilheiros do MPLA, as emboscadas e os mortos e feridos (Lobo Antunes operou sem anestesia), a PIDE e os Flechas, a apreensão de propaganda dos guerrilheiros, então terroristas, o assassínio de terroristas apanhados, as campanhas de vacinação, as crenças e festas dos locais, a alimentação e as bebidas e até um
show musical com artistas brancas em Gago Coutinho e que traçam uma história quase impossível de obter da leitura das cartas. Até formigas com asas o filme identifica, mais as chuvas violentas a que se segue sempre uma claridade deslumbrante naquelas terras. O que revela o conhecimento e a qualidade do argumento de Ivo Ferreira e Edgar Medina.
No filme, a personagem que representa Melo Antunes diz: "esta guerra não tem justificação". Ele e o alferes médico jogam mais uma partida de xadrez e Lobo Antunes está a acabar um capítulo de um livro, enquanto pensa na mulher e na filha recém-nascida. No filme, também se ouvem os sons da rádio: um discurso de Marcelo Caetano nas
Conversas em Família e um relato de futebol Benfica-Ajax. E sempre a longa e inesquecível planície da Lunda Sul.
De repente, enquanto via o filme, pensei no Teixeira, um jovem afável de Guimarães, e seis outros companheiros vítimas de uma emboscada no dia 1 de maio de 1972 na estrada que ligava Moxico (então Luso) a Dala, onde a minha companhia estava [imagens em baixo]. Este ano, no almoço de antigos combatentes em Angola, alguém me disse que eu estava de serviço nesse dia. Devo ter tido uma amnesia parcial, pois não me lembro desse serviço. Recordo apenas a agonia dos jovens militares na enfermaria da companhia, por já nada haver a fazer. E da descrição emocionada do Muga, um dos condutores de uma Berliet, ele que escapara com mais outros companheiros. Creio que nunca pensei muito bem nisto em 44 anos. Talvez tenha acabado o luto hoje.
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