Coisas e Coisas
Avatares desde Matrix
INTRODUÇÃO SÓCIO-POLÍTICO-CINEMATOGRÁFICATalvez fosse previsível que um blogue sobre cultura fosse trazer aqui o filme de maior bilheteria do ano, mas talvez fosse imprevisível que este blogue, por suas características ideológicas e intelectuais fosse trazer um filme hollywoodiano a ser comentado, uma vez que aproximadamente noventa e nove por cento do que se faz lá é mesmice e fórmulas aplicadas e reaplicadas a diferentes histórias. O filme hollywoodiano típico começa com um cena de ação que é para entreter os espectadores, então desenvolve-se uma história normalmente de violência, com a fórmula grega do começo-meio-fim onde há um herói, há amores e há tarefas a serem cumpridas, mentores e farsantes a serem encontrados. Desvios mal-acabados da fórmula descrita por
Campbell em "
O herói com mil faces" onde personagens centrais encarnam a mitologia da própria vida humana, coisa que o público quer ver na tela para identificar-se. Mas enquanto apenas um
George Lucas é capaz de adaptar as nuances mitológicas de um herói com mil faces, hollywood vem fracassando solenemente -- com louváveis exceções. Felizmente no entanto, dado um total esgotamento da fórmula, tem-se visto surgir sucessos de bilheteria que fogem a estas regra básicas da cinegrafia massificadora hollywoodiana, como são os criativos
tarantinos ou os mundanos
almodovares. No Brasil, o grande
Nelson Rodrigues já usava a fórmula mais criativa desde os anos 60, veja "
Boca de ouro" com seu enredo ainda modernista, uma vez que até mesmo a personalidade e lealdade dos personagens mudam dentro da mesma trama segundo humores variáveis da entrevistada que nos relata os acontecimentos.
O filme "Boca de ouro" (1963), dirigido por Nelson Pereira dos Santos é baseado em peça teatral de Nelson Rodrigues. Modernista na fórmula, não deixa em nada para trás as grandes obras do cinema contemporâneo.
Venho aqui entretanto dar o prêmio de
melhor filme ambientalista do ano ao afamado "Avatar" cuja história contra a dominação dos povos parece até impossível ter vindo de onde veio, o país dos maiores conquistadores do planeta que tentam exatamente fazer tudo isso que Cameron nos mostra na caricatura anti-navï de nossa própria sociedade. Cameron evidentemente sabe disso e talvez só mesmo o cineasta que tem no seu currículo a maior bilheteria de todos os tempos com Titanic (além dos filmes
Exterminador do Futuro e
Aliens, dentre outros) pode se dar ao luxo de criticar sua própria política governamental. Doutro modo, poder-se-ia pensar que os financiadores da obra, de tão mesquinhos e gananciosos, mal perceberam seu conteúdo humanista, ou nem se importaram. Mas ela está lá, indubitavelmente. Pela super-produção do filme e pelo alcance que tem, pela popularidade mundial e pelo divulgar ambiental Cameron teria talvez merecido ainda mais o grande prêmio da paz que seu próprio presidente, que não hesitou em mandar mais americanos ao Afeganistão no ano em que recebera a honraria. O filme pode representar também uma resposta, quiçá um acordar dos intelectuais e da cultura americana para as injustiças que teem cometido desde o fim da segunda guerra mundial, quando se tornaram a potência dominante e deixaram escorrer pelo ralo o ideal de liberdade em que o país se fundara. Obama tentou recapitular isso em seu discurso de candidato mas no poder provavelmente não consegue se ver livre dos militares e diversos setores conservadores da sociedade a comandar-lhe todas as tarefas. Veja sua dificuldade até com um simples e claramente justo (ou aquém da justiça) plano de saúde.
Avatar, a grande super-produção socioambientalista vem do coração capitalista da américa hollywoodiana. Obama é presidente: será o começo de uma nova era?
AVATARES DESDE MATRIXEnfim, deixemos toda esta discussão de lado por ora. De fato, a reflexão que me trouxe aqui foi ter pensado fugazmente em quão parecidos não são os avatares em "Avatar" e em "Matrix". As maiores e melhores ficções científicas dos últimos 10 anos têm um assunto em comum: a
filosofia da mente. Podemos de fato passar nossa consciência para outros corpos, máquinas ou dividir um mundo inexistente e que está apenas nas mentes das pessoas? No filósofo francês René Descartes tais filmes travam herança, mais precisamente no
Discurso do Método onde o filósofo francês desconstrói todo o mundo, questiona sua própria experiência sensível ao supor um demônio a enganar seus sentidos, descredita em absoluto sua experiência sensorial e chega finalmente à resposta última, máxima magna da filosofia: "
penso, logo existo". Matrix é também um filme de avatares, deita-se também no aparelho com o corpo verdadeiro e então incorpora-se outra criatura. Em Matrix diz-se que a criatura que se incorpora é como uma imagem idealizada de si mesmo, enquanto em Avatar incorpora-se uma criatura de outra espécie, um indivíduo da espécie Navï, que inclusive tem novos sistemas sensoriais e agilidades extras às de um ser humano. De fato, cientistas personagens em Avatar revelam que a criatura avatar é feita de DNA híbrido de humanos e navïs, mas de fato o indivíduo é indiferenciável de um Navï típico.
O ambientalismo em Avatar é exultante, presente e maravilhoso; há na ficção a idéia comum ao índigena sobre uma
Unidade da Natureza e assim os organismos vivos podem estabelecer um contato físico através de um órgão de comunicação específico para tal. Através das pontas de seus cabelos os navï conectam-se a árvores e animais, integrando-se de forma mais completa a outras formas de vida e conseguindo inclusive uma comunicação mais eficiente com elas. Revitalizar e materializar essa metáfora da integração da vida entre espécies parece extremamente interessante em uma época onde a população é predominantemente urbana e esquece da forte relação que existe entre os homens e outros animais. Índios e gente do campo, entretanto, além de apreciadores da natureza e dos animais sabem que este canal de comunicação existe de fato entre o ser humano e os entes naturais, embora seja muito mais sutil do que esta comunicação direta que Cameron brilhantemente encontra como metáfora ao criar os navï.
Matrix também é um filme onde estão presentes avatares. Mas em que sentido são eles parecidos com os avatares do povo Navï de Cameron?
A questão do mundo ao qual se viaja em
Avatar e
Matrix pode ser comparada. No sombrio clássico do cinema moderno, o mundo real é completamente diferente deste em que se vive: o tempo é diferente e toda a tecnologia é também diferente. Em Matrix o mundo real está duzentos ou trezentos anos à frente da era atual onde os personagens se inter-relacionam e -- de forma antes alarmista sobre o poder das máquinas e da inteligência artificial, na linha cinematográfica de obras como "
Blade Runner" e "
O Exterminador do Futuro" -- o filme mostra como a primazia da ordem do planeta pode ser tomada por seres que nós mesmos teríamos inventado, programas egoístas que dada uma catástrofe nuclear precisam utilizar nossa própria energia metabólica para alimentá-los em suas necessidades energéticas. Copiando em parte o que acontece hoje em nossa sociedade e agora também ligado a um catastrofismo observado na trilogia "
Mad Max", o mundo matrixiano é um lugar onde a busca por energia é o que move a ganância dos seres. Tema recorrente na ficção e na realidade (dos empreiteiros), o mundo parece precisar de mais energia. Em Matrix, a energia é produzida por nós mesmo, que funcionamos como pilhas para as máquinas, escravizados que estamos. Já em Avatar, o mundo em que o avatar vive é exatamente o mesmo do que o humano, não há diferenças em tempo ou em espaço e inclusive o avatar pode entrar fisicamente em contato com o corpo do indivíduo que lhe controla a mente. Em Matrix isso seria completamente impossível, os corpos das pessoas reais estão empilhados e deitados em substâncias nutrientes, não há qualquer relação entre o mundo do avatar e o mundo do indivíduo em sua real existência.
Uma questão tecnológica que não é abordada em nenhum dos dois filmes -- mas que seria importantíssima se quisermos pensar sobre uma tecnologia de transferência de consciência -- teria relação com a velocidade de transmissão das informações nervosas entre o indivíduo "real" e o avatar. Como essa informação é transmitida? Através de qual meio? Algo pode interrompê-la ou prejudicá-la? O quê? Pelo fato de que em ambos os filmes a passagem da capacidade cognitiva do humano ao avatar termina com morte do humano-real, fica-se então a idéia e a impressão de que é nele que está fisicamente situada a consciência, transmitida em ambos os filmes instantaneamente, até o módulo avatar. Da mesma forma, as informações sensoriais obtidas pelo avatar precisariam ser transmitidas até o cérebro do humano, processadas e então re-enviadas ao avatar para que este tomasse atitudes. Entretanto na ficção dos filmes não há esse problema de transmissão de informações e tudo funciona como se fosse o próprio cérebro do avatar que comandasse, ex loco, suas ações e movimentos. Algumas diferenças lógicas precisariam acontecer caso as coisas não acontecessem dessa forma e esta pode ser considerada, de certa forma, uma falha conceitual relacionada à existência de avatares. Doutro modo, caso as informações do cérebro humano fossem passadas ao avatar e nele residissem por um determinado tempo, a morte do humano não causaria morte instantânea do avatar; doutra forma poderia acontecer do indivíduo -- se morto na vida real -- ficar para sempre aprisionado dentro ao corpo do avatar. Noutro caso poder-se-ia quiçá transferir a mente para o avatar e continuar-se com a própria mente, neste caso ter-se-ia inventado um clone mental de si mesmo. Espera-se, inclusive -- justamente pelos problemas que pode criar -- que tal técnica de transferência de consciência continue no campo da ficção, do contrário loucos autoritários, poderosos e ignorantes poderiam querer fazer clones mentais de si mesmo
ad infinitum; dá medo imaginar um mundo cheio de clones mentais de Bush Junior.
Finalmente, vale mais uma vez ressaltar o enorme empenho de Cameron trabalhando durante anos a fio em produzir um filme
socioambientalista dentro do coração hollywoodiano de uma américa super-capitalista e ainda em grande medida controlada por um exército cuja fonte de renda consiste na realização de guerras e na opressão de povos. Os navï são sem dúvida uma metáfora para populações presentes em todas as partes do globo que ainda precisam lutar para manter suas terras e sua tradição à despeito da desenfreada, absurda e assassina corrida do capital e do dinheiro, corrida esta que tem destruído nosso planeta e espalhado terror e guerra entre os povos. Avatar é uma crítica a tudo isso, nascida no berço da dominação e, tendo sido um filme que liderou bilheterias por semanas, influenciou positivamente a humanidade do porvir. Esperemos que o ideal e a história mágica produzam resultados práticos, senão hoje, ao menos para uma próxima geração de crianças e jovens maravilhados pelas peripécias e pelo drama do belo e pobre povo navï.
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