Coisas e Coisas
AINDA SOBRE A RTP
"Como querem aumentar as audiências actuam como incendiários da opinião pública, criando a falsa imagem de um país à beira da guerra civil" (Felix del Moral, sociólogo espanhol do Centro de Investigações Sociológicas, em artigo assinado por José Alves e editado no
Expresso de hoje). O sociólogo refere-se a directores de media como Pedro J. Ramírez, do jornal
El Mundo, com editoriais crispados para com a política do governo nacional espanhol e que funcionam como palavras de ordem para as intervenções da oposição governamental. O subtítulo da peça diz: "Um país em pelo crescimento económico é retratado pelos media madrilenos com estando em crise".
A análise contida na peça jornalística remete para a teoria do agendamento de McCombs e Shaw, para quem os leitores tendem a partilhar a definição proposta pelos media sobre o que é importante, pelo que se pode falar em função de agendamento dos media (retirado de Nelson Traquina,
O poder do jornalismo, Minerva, 2000, p. 17). Ou melhor: os media podem não conseguir dizer às pessoas como pensar mas sobre o que pensar.
A leitura da peça sobre a posição dos media madrilenos acerca das políticas governamentais fez-me associar os textos de Eduardo Cintra Torres e José Pacheco Pereira de hoje, no
Público. Em questão: os 50 anos da RTP. Eu próprio escrevi aqui sobre o assunto, mas foi um texto fugidio, pouco importante e menos bem acutilante do que estes dois textos (em jeito de autocrítica: errei o alvo).
Tenho os dois articulistas assinalados acima como das pessoas mais bem informadas do país, leio sempre atentamente o que escrevem - e os seus textos servem-me para reflectir aqui ou noutros espaços. O título de Pacheco Pereira é objectivo: "RTP: cinquenta anos de serviço a regimes e governos". Para o articulista, os governos têm na televisão um mecanismo de poder. Mas ele pode ser a televisão pública como um canal comercial, como há algumas semanas o director-geral de uma televisão privada disse a propósito da saída de Marcelo Rebelo de Sousa do espaço de comentário político nessa televisão. O que retira força ao argumento contido no último parágrafo do texto de Pacheco Pereira - "O país ficaria muito melhor sem televisão pública".
Há dias, José Manuel Fernandes escrevia um editorial neste sentido e Eduardo Cintra Torres pronunciava-se de modo muito semelhante, quando se referia ao
Diário de Notícias como um jornal ao lado do poder político há cem anos. Hoje, Cintra Torres, com um título obtido de empréstimo de Sartre (
O ser e o nada), fala da função da comunicação usada pela RTP: o contacto. Este contacto, escreve, cria a aura dos comunicadores e um aparente cimento afectivo, mas sem afastar a solidão dos espectadores e sem conteúdo. Mas a televisão é sempre um meio frio que nunca cria afectividade - trata-se de uma imagem num ecrã, logo cintilação artificial e efémera. Público ou comercial, um canal de televisão enfrenta o mesmo obstáculo de ser e de não ser nada.
Também ontem, Pulido Valente, no seu estilo habitual de desprezo pelos seres humanos, disse que a RTP foi sempre igual. Ele conhece-a bem, como se lê no seu texto, pois por lá passou numa altura em que tinha poderes governativos. A pergunta seguinte é: e porque não alterou a estrutura da televisão pública, se tinha força para tal?
O retrato feito nestas leituras, veiculadas por um mesmo jornal mas embora por pessoas que reflectem com profundidade sobre os problemas quotidianos do país, parece-me profundamente negativo. Há uma tendência, um quase consenso sobre o assunto. José Manuel Fernandes, Pacheco Pereira e Cintra Torres escrevem regularmente sobre os media - os dois últimos até já publicaram livros sobre estas matérias (e que eu tenho aqui interpretado, dada a pertinência dos seus pensamentos e argumentos). Embora este movimento não se integre dentro da linha incendiária da mostrada pelo sociólogo espanhol, a necessidade de jornalistas e cronistas trabalharem sobre a actualidade noticiosa - logo uma rede temática comum -, leva-me a concluir existir uma partilha dentro da teoria do agendamento de McCombs e Shaw, com a produção de uma escrita crítica comum. A qual pode condicionar a manifestação da opinião pública pela falta de alternativas.
Lembro as palavras de Cintra Torres no artigo de hoje (espero não descontextualizar): "Em 50 anos, a RTP teve uma informação globalmente subserviente; uma produção cultural erudita diminuta e uma produção popular em geral pimba". Isto é duro, pode ser verdadeiro, mas deve levar-nos a produzir elementos de compreensão mais profundos que o espaço reduzido da página de jornal. Para um melhor entendimento do país, exige-se a discussão pública da televisão pública, a qual não se pode ficar nem na página de um jornal nem nos resultados da conferência internacional de 19 e 20 de Março.
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