Coisas e Coisas
A ESTRELA DE TELEVISÃO E OUTROS TEMAS
Numa sala, 15 ouvintes acompanhavam a apresentação de um jovem brasileiro a fazer mestrado em Portugal e que fazia a interpretação de uma notícia a partir da teoria do holandês Teun van Dyik. No auditório, 300 pessoas escutavam em silêncio um jornalista apresentador de noticiários televisivos. Este jornalista falava dos poderes (político, económico, de grupos instalados) e sua influência sobre a construção das notícias. Também elogiava o director do canal (um "animal" da televisão), embora confessasse nem sempre estar de acordo com ele. E dizia que um canal de televisão vive para as audiências (para os anunciantes, acrescento). Ora, o canal a que o jornalista pertence perdeu recentemente a liderança em termos de audiência quanto aos noticiários televisivos, porque estes se tornaram mais sérios, "deixaram de ouvir as pessoas", disse. Isto quer dizer: jornais tablóides, que ouvem as vozes populares, caso de recatadas donas de casa que se inflamam, gritam e estariam dispostas a matar sempre que uma câmara de televisão ligada em directo passa perto delas.
Ontem, o jovem mestrando terá sido seguido com enfado pela curta assistência, certamente à espera de também apresentar a sua comunicação. O jornalista de televisão foi longamente ovacionado, pois era, apesar da sua humildade e sem maquilhagem, uma estrela de televisão. O modelo tablóide que lhe servia de referência fazia um grande consenso na sala, ali junto ao jardim da Arca d'Água. Possivelmente, a passagem do modelo de referência para tablóide do
Diário de Notícias, anunciada para segunda-feira, com a entrada do novo director, trará também aplausos (e, esperemos, audiências).
Mas Eduardo Cintra Torres é injusto quando se refere ao alinhamento constante do
Diário de Notícias com os governos, no seu texto de hoje no
Público. Primeiro, porque não é desde a Primeira República. Vem já da sua fundação (1864). Apesar de os escassos historiadores da imprensa de finais do século XIX escreverem sobre a objectividade e novo jornalismo no
Diário de Notícias de Prado Coelho, creio que estão profundamente errados. O jornal era monárquico até às costuras. Basta lê-lo aquando da crise de 1890 provocada pelo ultimato. Enquanto o
Século, republicano, inventava o ultimato e um mais que possível bombardeamento de Lisboa pela armada inglesa, o
Diário de Notícias era um jornal observatório, escudando-se em recortes de imprensa estrangeira para servir a posição do ainda recém-nomeado rei D. Carlos.
A meu ver, o
Diário de Notícias tem na sua longa história uma excelente relação com as fontes oficiais (as dos poderes político, económico e de grupos de pressão). Os outros não, no que Eduardo Cintra Torres tem razão. Por uma razão: eles desaparecem quando há uma ruptura política, pelo que não fica a memória desse lastro de ligação às fontes oficiais. Durante uma fatia importante do regime do Estado Novo, o
Diário de Notícias era um jornal oficioso (diferente de jornal oficial, pertencente ao poder político, o
Diário da Manhã). O drama do jornalismo moderno reside aí - a resiliência das fontes oficiais (o seu peso, o seu estatuto, o seu capital cultural simbólico, à la Bourdieu) face a um poder frágil dos jornalistas. Para mim, esta é a única falha que se aponta nos três textos de José Pacheco Pereira ao longo dos últimos sábados (no
Público), defensor que é da grande força da corporação jornalística junto aos poderes eleitos democraticamente.
Como segunda crítica ao texto de hoje de Eduardo Cintra Torres, não podemos esquecer que o
Diário de Notícias não foi um modelo de boa governação nos últimos anos, como já escrevi aqui. A passagem por proprietários diferentes (Estado, Lusomundo, PT, Controlinveste) fez com que os diversos directores actuassem com estratégias e visões as mais variadas. Um jornal é uma empresa - se a orientação não é a melhor, o negócio não se sai bem. Infelizmente, não adquirimos ainda uma cultura de crítica, de independência e, até, de irreverência perante o poder. E parece que não é possível, como disse o jornalista de televisão no congresso acima referenciado.
Dos jornais vivos que têm resistido às mudanças políticas - é curioso que estas têm sido os maiores carrascos dos media impressos e não as questões tecnológicas ou de falta de leitores (passagem da monarquia constitucional para a Primeira República; Estado Novo; regime instaurado em 1974) - o
Diário de Notícias é o mais acossado neste momento. Mas não se deve augurar a morte do jornal, como fez Gustavo Cardoso (via
Blogouve-se). Ao menos que se venda aos espanhóis. Certamente que eles o recuperariam.
Nota: obrigado a Daniela Bertocchi por ter feito referência à minha participação nas II Jornadas Internacionais de Jornalismo no seu Intermezzo.
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