a viagem do elefante, de josé saramago
Coisas e Coisas

a viagem do elefante, de josé saramago






Estive por aqui lendo a nova -- e, segundo o próprio autor -- talvez última obra do único prêmio nobel de literatura em língua portuguesa: josé saramago. Sempre inventando moda com a língua portuguesa, neste livro saramago não usa as maiúsculas senão nos começos de frases -- e mesmo os nomes de personagens e cidades no livro aparecem sempre em minúsculas. Isso me lembra uma estratégia semelhante ideologicamente e utilizada no espetacular "ensaio sobre a cegueira" quando o autor escreve um livro inteiro sem citar o nome de nenhum personagem. São as minúcias estilísticas que constroem um grande literato. Isso sem contar com seus recursos sempre presentes, como (1) a utilização única de pontos e vírgulas como sinais de pontuação, (2) os maravilhosos e dinâmicos diálogos entre as personagens e (3) um quê de surrealidade e loucura temáticos; (4) frases e parágrafos longos e contínuos que, apesar disso, jamais entediam ou deixam o leitor perdido.

Transcrevo aqui um relato sensacional de mostra e divulgação do pensamento crítico tido por um dos personagens do livro "A viagem do Elefante" de Saramago (pags 114-116).

"(...) Vejo-te muito severo com o pobre do salomão, Talvez seja por causa da história que um dos ajudas me acabou de contar, Que história é essa, perguntou o comandante, A história de uma vaca, As vacas têm história, tornou o comandante a perguntar, sorrindo, Esta, sim, forma doze dias e doze noites nuns montes da galiza, com frio, e chuva, e gelo, e lama, e pedras como navalhas, e mato como unhas, e breves intervalos de descanso, e mais combates e investidas, e uivos, e mugidos, a história de uma vaca que se perdeu nos campos com a sua cria de leita, e se viu rodeada de lobos durante doze dias e doze noites, e foi obrigada a defender-se e a defender o filho, uma longuíssima batalha, a agonia de viver no limiar da morte, um círculo de dentes, de goelas abertas, as arremetidas bruscas, as cornadas que não podiam falhar, de ter de lutar por si mesma e por um animalzinho que ainda não se podia valer, e também aqueles momentos em que o vitelo procurava as tetas da mãe, e sugava lentamente, enquanto os lobos se aproximavam, de espinhaço raso e orelhas aguçadas. Subhro respirou fundo e prosseguiu, Ao fim dos doze dias a vaca foi encontrada e salva, mais o vitelo, e foram levados em triunfo para a aldeia, porém o conto não vai acabar aqui, continuou por mais dois dias, ao fim dos quais, porque se tinha tornado brava, porque aprendera a defender-se, porque ninguém podia já dominá-la ou sequer aproximar-se dela, a vaca foi morta, mataram-na, não os lobos que em doze dias vencera, mas os mesmos homens que a haviam salvo, talvez o próprio dono, incapaz de compreender que, tendo aprendido a lutar, aquele antes conformado e pacífico animal não poderia parar nunca mais.

Um silêncio respeitoso reinou durante alguns segundos na grande sala de pedra. Os soldados presentes, embora não muito experimentados em guerras, baste dizer que os mais novos nunca haviam cheirado a pólvora nos campos de batalha, assombravam-se no seu foro íntimo pela coragem de um irracional, uma vaca, imagine-se, que havia mostrado possuir sentimentos tão humanos como o amor de família, o dom do sacrifício pessoa, a abnegação levado ao extremo. O primeiro a falar foi o soldado que sabia muito de lobos, A tua história é bonita, disse para subhro, e essa vaca merecia, pelo menos, uma medalha ao valor e ao mérito, mas há no relato algumas coisas pouco claras e até mesmo bastante duvidosas, Por exemplo, perguntou o cornaca em tom de quem já se preparava para a luta, Por exemplo, quem te contou esse caso, Um galego, E como o conheceu ele, Deve tê-lo ouvido a alguém, Ou lido, Não creio que saiba ler, Ouviu-o e decorou-o, Pode ser, eu contentei-me com repeti-lo o melhor que pude, Tens boa retentiva, tanto mais que a história vem contada numa linguagem nada corrente, Obrigado, disse subhro, mas agora gostaria de saber que coisas pouco claras e bastante duvidosas encontras tu no relato, A primeira é o facto de se dar a entender, ou melhor, é claramente afirmado que a luta entre a vaca e os lobos durou doze dias e doze noites, o que significaria que os lobos atacaram a vaca logo na primeira noite e se retiraram, provavelmente com baixas, na última, Não estávamos lá, não pudemos ver, Sim, mas os que conhecem alguma coisa sobre lobos sabem que esses animais, embora vivam em alcatéia, caçam sozinhos, Aonde queres tu chegar, perguntou subhro, Quero chegar a que a vaca não poderia resistir a um ataque concertado de três ou quatro lobos, já não digo doze dias, mas uma única hora, Então, na história da vaca lutadora tudo é mentira, Não, mentira são só os exageros, os arrebiques de linguagem, as meias verdades que querem passar por verdades inteiras, Que crês tu então que se passou, perguntou subhro, Creio que a vaca realmente se perdeu, que foi atacada por um lobo, que lutou com ele e o obrigou a fugir talvez mal ferido, e depois se deixou ficar por ali pastando e dando de mamar ao vitelo, até ser encontrada. E não pode ter sucedido que viesse outro lobo, sim, mas isso já seria muito imaginar, para justificar a medalha ao valor e ao mérito um lobo já é o bastante. A assistência aplaudiu pensando que, bem vistas as coisas, a vaca galega merecia a verdade tanto como a medalha
."


Espetacular diálogo saramaguiano de divulgação do pensamento crítico. Viva saramago!

Finalmente, "a viagem do elefante" apresenta ainda diversos pontos altos onde o autor divaga metalinguisticamente sobre sua própria forma interrompida de escrita, mostra o abuso de autoridade de alguns (quando o nome de subhro é modificado para fritz pelo duque austríaco) e busca a fundo palavras pouco utilizadas no português, apresentando-as ao leitor. Mais um viva a saramago: Viva!



loading...

- Chapeuzinho Na Mídia
Dia desses, recebi um e-mail de uma amiga que mostrava como diferentes veículos de comunicação destacariam uma história de Chapeuzinho Vermelho. O autor é desconhecido, a piada, antiga, mas vale a pena ler. JORNAL NACIONAL (William Bonner): “Boa...

- Saramaguiologia
Não se ganha um prêmio Nobel de literatura à toa, José Saramago de fato revolucionou a língua portuguesa e a forma de se narrarem fatos e casos. Dentre os principais elementos de novidade que posso encontrar na sua obra, gostaria de citar: 1) Surrealidade...

- Os Dois Lobos
Um ancião índio descreveu os seus conflitos internos da seguinte maneira:- Dentro de mim tenho dois lobos. Um deles é cruel e mau. O outro é muito bom. Os dois lobos estão sempre à briga.Quando lhe perguntaram qual o lobo que ganhava a briga, o...

- A Pontuação Que Quer Dizer Alguma Coisa Que Ainda Não Consegui Descobrir
A pontuação da língua portuguesa foi formulada para aproximar um pouco mais o que falamos de como escrevemos. Por isso, usamos uma vírgula, por exemplo, para indicar para o leitor que ele deve dar uma paradinha ali. O ponto indica o fim da frase....

- Desimportando-se Com O Autor
Não suporto pessoas que se surpreendem com um comentário a favor ou contra determinadas obras, pelo fato dela ser de um ou outro autor. É sempre a mesma coisa, quando critico uma obra louvada por todos, sempre vem aquele que fala: "É, mas você não...



Coisas e Coisas








.