Muito tenho lido a respeito dos problemas causados por uma tradução da obra original. Quero citar dos exemplos bem controversos: "Ulysses", de James Joyce e "Pale Fire", de Vladimir Nabokov.
"Ulysses" possui um sem número de articulações e jogos lingüisticos impossíveis de serem traduzidos. Qualquer tradução do idioma original para um idioma completamente diferente, como é o caso do português, implica necessariamente em criar um segundo autor: o tradutor. Os mais implicantes poderiam dizer que isso é algo terrível, que ler "Ulysses" em português não é ler "Ulysses" e que alguém que perde seu tempo lendo uma tradução (aqui no Brasil, a mais acessível é a do Houaiss) deveria colocar a mão na consciência e trocar pelo original. Os principais pontos colocando por estes que defendem a leitura do original é que a compreensão plena da obra não é tudo e que colocar alguém entre você e o escritor é desvirtuar a obra. Rebato os dois argumentos com um só: todo leitor é livre. Ao optar por uma tradução, qualquer que seja, muitas vezes o que o leitor busca pode ser compreensão, mas em alguns casos não é só isso. No meu caso li os dois "Ulysses", o original e a tradução do Houaiss, e para espanto de muitos, gosto mais da tradução em português. Por quê? Não pela compreensão da obra. A obra é muitas vezes incompreensível, seja ela em inglês, em português ou em urdu. O fato é que quando o leitor apanha um livro na estante para ler, ele quer mais do que apenas ler o livro, ele quer interagir com a obra. Esta interação, a meu ver, deve ser sempre confortável. Imagine-se numa sala com Joyce: para mim pouco importa estar conversando diretamente com ele em inglês (valorizando seu sotaque irlandês, sua gagueira ou pronunciar alguma palavra ou a maneira entrecortada de declamar um poema) ou através de um intérprete. O ponto que valorizo ao ler é o conforto na leitura que me permite sentir prazer. Sinto muito mais conforto de ler Joyce em português, mesmo com a perda dos malabarismos linguísticos originais, muitos dos quais eu nem perceberia por esta não ser minha língua materna. Note que a questão não é uma valorização ufanista da língua portuguesa e sim a valorização do conforto que sinto ao ler "Ulysses" em português. Enfim, quero que os jogos linguísticos se explodam, quero passar página a página da obra percebendo os enigmas que o autor lança e isso pode ser conseguido tanto no inglês como no português. Já que me sinto mais confortável ao descobrir esses enigmas lendo em português, valorizo a tradução do Houaiss, que para isso é excelente. Sei que muitas frases são escritas propositalmente de forma ambígua, permitindo novas interpretações, mas se estas são tão escondidas a ponto de você nem percebê-las a não ser que tenha às mãos uma edição crítica com notas, pra quê serve ler o original?
Outro exemplo é "Pale Fire", de Nabokov. A obra se divide em duas: a primeira parte é uma poema enorme e a segunda é uma análise frase a frase do poema. Quem conhece a introdução em inglês de "Lolita" sabe muito bem que Nabokov é um mestre ao escolher palavras e frases perfeitas. Agora, imagine isso num poema. Possuo a edição recente da "Companhia das Letras" em português e parece-me muito boa, mas sabe como é? Na hora que lemos os comentários do crítico a respeito de uma determinada frase, fica sempre aquela má impressão e logo passamos a imaginar a tal frase em inglês. Bom, nesses casos por melhor que seja a tradução, acredito que a única solução possível é a publicação da obra em edição bilíngue, tal como os volumes de T. S. Eliot que foram traduzidos por Ivan Junqueira (a tradução é excelente, mas a edição traz os poemas em seu idioma original ao lado) e lançados recentemente pela editora ARX. Mas mesmo nesses casos, pode-se ver a tradução como algo bom. Ela serve para atrair o leitor e estimulá-lo a buscar um sentido mais claro, que encontrará na obra em seu idioma original. Ou seja, primeiro o leitor sente um conforto ao ler em sua língua materna, mas devido às suas limitações, busca um esclarecimento através do idioma original.
Em resumo, as traduções são como uma fotografia. Muitas vezes você não precisa ter a pessoa à sua frente, tocá-la, sentí-la, cheirá-la. Só a fotografia, mesmo desfocada, serve aos seus objetivos, aproximando duas pessoas. Em outros casos, a fotografia não serve: você conhece a aparência da pessoa, mas quer ficar próxima à ela. Na literatura, isso também ocorre, nem sempre estamos dispostos a estar tão próximos assim do autor. E nem por isso sentimos alguma perda.