Coisas e Coisas


OS ANOS DE OURO DA NOSSA TELEVISÃO

Nestes últimos dias, redescobri o livro de Lopes da Silva e Vasco Hogan Teves, Vamos falar de televisão (1971). Na altura, devo tê-lo comprado, mas perdeu-se, com certeza, em casa dos meus pais.

Relê-lo foi um enorme prazer, em especial a parte de Vasco Hogan Teves. Escreve este historiador da televisão sobre o primeiro passo do novo medium: “O momento da revelação em luz e som aprazado para a noite de 4 de Setembro de 1956. A televisão entre nós, pela primeira vez. Na Feira Popular de Lisboa, em Palhavã. […] Três corpos pré-fabricados, para albergarem, de um lado, emissor, telecinema, controlos de estúdio e emissão; do outro, camarins para artistas, sala de caracterização e um pequeno escritório; ao centro, no corpo principal, o estúdio, de paredes rasgadas por vidraças” (p. 115).

O maior espectáculo do mundo

E, mais à frente, sobre as mesmas emissões da Feira: “Meia hora depois das nove da noite de 4 de Setembro de 1956. Uma câmara assesta uma das suas objectivas sobre um locutor. Foca-o. E logo após ter sido retirada a mira técnica, a central mete-o «no ar». Imagem «ao vivo» pela primeira vez. Raul Feio apresentou o programa da noite. […] Confessou a felicidade que todos sentiam em proporcionar ao lisboeta «o maior espectáculo do Mundo», e como todos estavam desejosos de o poder fazer em breve a todos os portugueses. Terminou apresentando monsenhor Lopes da Cruz, presidente da assembleia-geral da RTP e director da Rádio Renascença, que proferiu uma declaração – o «artigo de fundo» da primeira página que se oferecia ao público. […] O primeiro «sorriso RTP» surgiu imediatamente depois. Pertenceu a Maria Armanda Falcão [mais tarde conhecida pelo pseudónimo Vera Lagoa], que relembrou as restantes rubricas do programa da noite e introduziu um documentário filmado sobre a ourivesaria portuguesa” (pp. 122-123). A maior parte da audiência seguia a emissão através dos aparelhos espalhados pelo recinto. No dia seguinte, a televisão em Lisboa era assunto de primeira página nos jornais.

Uma brochura ilustrada da RTP, de 32 páginas, dizia que, ao se colocar “ao serviço da Arte, da Ciência, da Técnica, da Cultura, a Televisão é, hoje, um eficiente instrumento de educação. Ela é, ao mesmo tempo, o Livro, o Palco, o Concerto, o Estádio, a Viagem, o Jornal”. A brochura tinha publicidade das principais marcas, que iam em 25 marcas. No mesmo documento, chamava-se a atenção para os 24 períodos de programa nocturno (cerca de 50 horas) e os espaços diurnos de mira técnica para afinação dos receptores que se iam vendendo. Curiosa relação do serviço público com a publicidade, ainda sem as lutas pelos shares e pelos investimentos publicitários. Era a idade de ouro da televisão, onde se sonhava educar com serões de ópera e teatro radiofónico. Não direi que estamos longe, na perspectiva saudosista, mas apenas que a televisão mudou [a propósito, saiu em 2003, no mercado espanhol, um livro de Mª Ángeles Moreno Fernandéz, intitulado La identidad de la televisión pública, que espero reflectir aqui em breve].

Claro que a expressão idade de ouro da televisão precisa de ser desconstruída. Primeiro, porque se trata aqui do período experimental do medium, como a seguir explicito; logo ainda se está à procura de fórmulas e de estruturas. A idade de ouro pressupõe maturidade. E, depois, e em especial, porque a história de Vasco Hogan Teves apresenta uma perspectiva pura e naïf. Nada no texto nos diz sobre as lutas do poder político. E sabemos que - como se lê na tese de doutoramento de Francisco Rui Cádima sobre os noticiários da RTP - havia um controlo sobre o que era dito. O regime era uma ditadura e a televisão foi desde logo um excelente instrumento de poder. O livro agora referenciado está alheio a essa realidade social e política, ficando-se apenas nos aspectos técnicos e estéticos.

Uma programação experimental - ou o começo de um novo gosto

Para Vasco Hogan Teves, “A programação ensaiada pela RTP na Feira foi fértil em rubricas musicais. Os mais populares artistas nacionais, de parceria com alguns estrangeiros de passagem por Lisboa, possibilitaram uma série apreciável de programas, nomeadamente do género ligeiro” (p. 132). A Revista dos Espectáculos, apresentada nos programas da Feira, por Raul Ferrão, teria um pouco de tudo, “da música à arte de dizer, dos quadros de revista ao teatro de fantoches. Solnado contou aí as primeiras histórias da sua vida; o maestro António Melo (que mais tarde a televisão transformaria em vedeta) lá fez acompanhamentos ao piano; e uma grande figura do teatro português, entretanto desaparecida, Alves da Cunha, recebeu no programa a homenagem que se justificava”. As emissões experimentais da Feira acabariam em final de Setembro. Mas a televisão voltou em 3 de Dezembro, nos estúdios do Lumiar, para a chamada "nova série de emissões-piloto para a área da capital”, até ao início dos serviços regulares, em Março de 1957.

A RTP iniciara, em Outubro de 1956, a adaptação de um estúdio cinematográfico, implantado no Lumiar. Neste estúdio, havia “uma série de departamentos técnicos: régie, comandos de vídeo e de áudio, telecinema, controlo de emissão, cabinas para projecção de filmes, locução, gravação, sonoplastia, etc.” (p. 138). Depois, durante "25 dias de Dezembro de 1956 (aos domingos não havia programa) a RTP esteve «no ar», com emissões de ensaio, cerca de 90 horas” (p. 141). A base da programação era filmes, exibindo-se cerca de 60 curtas e médias metragens. Também se incluiriam telediscos e revistas filmadas (desportiva, feminina, cinema e curiosidades). Em 1957, o alinhamento era (1) começo do primeiro período, às 17:00, com diapositivos de abertura e mira, durante 45 minutos; programas de ensaios técnicos, preenchendo 15 minutos; às 18:00, início da passagem de filmes, intercalados por diapositivos, até dois minutos antes das 19:00; diapositivos de encerramento; (2) começo do segundo período às 21:00, com diapositivos de abertura, durante 5 minutos; filmes intercalados por diapositivos, até 3 minutos antes das 22:30; diapositivos de encerramento.

Emissões regulares e visita da rainha de Inglaterra

Começariam a 7 de Março de 1957. Havia rubricas musicais ligeiras mas também música clássica, bailado e declamação. O primeiro programa de entrevistas foi o “Miradoiro”. Pela rubrica “Esta Palavra Saudade” passaram figuras importantes da vida artística e cultural. Vasco Santana criou momentos de humor nos “Televizinhos” e nas “Anedotas da Semana”. O primeiro concurso foi “Veja se adivinha”, promovido em colaboração com a revista Rádio e Televisão (p. 162). Depois, no final desse ano, cerca de 45% da população estava servida pela televisão. Mais tarde, em 1964, a "RTP montava e punha a funcionar o seu primeiro equipamento de gravação magnética (videotape), que permitiu uma reprodução de imagem de boa qualidade e aumentou, de forma sensível, as possibilidades de uma melhor, mais frequente e variada produção de programas, especialmente dramáticos e musicais, através de uma utilização mais intensiva e racional dos estúdios existentes” (p. 168).

A visita da rainha Isabel II foi um dos primeiros trabalhos de grande envergadura da nossa televisão pública. Corria o ano de 1957: no Terreiro do Paço, fora filmada uma bobina de 30 metros, com planos colhidos de posição estratégica, conforme os ingleses haviam planeado. A rodagem foi feita por um operador da RTP. “Um avião a jacto, da RAF, vindo especialmente de Londres ao serviço da BBC, aguardou no aeroporto de Lisboa apenas o tempo necessário para que um estafeta-moto fizesse entrega desse filme, e de outro impressionado pelos operadores britânicos, e descolou imediatamente. Cerca de 3 horas depois, toda a Inglaterra via as primeiras imagens da sua rainha em Lisboa. Foi Carlos Tudela quem impressionou essa bobina. […] A contante «velocidade» comandou todas as operações, directas ou marginais, referentes à «cobertura» da visita real. Filme rapidamente entregue para processamento laboratorial (na Tobis Portuguesa) representava ganho de tempo apreciável para quem tinha depois de o manusear em tarefas de montagem e de estabelecimento de ordem de vistas para esboço de locução”. “A RTP apresentava as primeiras imagens de Isabel II em Portugal: a sua chegada à base aérea do Montijo. Filmara-as Baptista Rosa, horas antes, e as bobinas foram transportadas por avião até à Portela de Sacavém” (pp. 150-151).

Estranha (artesanal) forma essa de produzir e emitir conteúdos, hoje que os videotelefones e as câmaras digitais ligadas a computadores e interconectadas na internet divulgam em "tempo real" o que se faz.

Sem constar desta história da RTP, mas importante para a minha vida pessoal: comecei a ver regularmente televisão, aos domingos à tarde, em 1960, num salão paroquial, vivia então nos arredores do Porto.

Livro: Lopes da Silva e Vasco Hogan Teves (1971). Vamos falar de televisão. Lisboa: Verbo



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