Coisas e Coisas
INDÚSTRIAS CULTURAIS EM THEODOR ADORNO - O SEU PENSAMENTO (II)
[Continuação do texto sobre o pensamento de Adorno iniciado no post de 9 de Julho]
Elementos constantes da obra de Adorno
1) Denúncia e recuperação
2) Situação aporética da sociedade (que inclui a arte e a cultura)
3) Teoria do mundo administrado
4) Indústria cultural (Kulturindustrie)
Lêem-se as obras de Adorno na perspectiva da denúncia (Jimenez, 1977: 31). A produção artística é manipulada, segundo Adorno, que se insurge contra os meios ideológicos que permitem e “justificam” essa manipulação (recuperação). A arte está num impasse – é a situação aporética. Após se libertar das funções cultuais, religiosas e morais, a arte entra nos circuitos económicos. E, para além de entrar nos circuitos das mercadorias (indústria cultural), a arte serve também de veículo ideológico à dominação do mundo administrado, sociedade tecnocrática onde tudo se mede, etiqueta, vende e consome.
O entendimento dado por Adorno à dimensão psicossexual do totalitarismo toma normalmente outras formas, mas destaca a libido. Contrariamente a Erich Fromm, que redefine sadismo e masoquismo em termos essencialmente não sexuais, Adorno insiste no significado psicanalítico original (Jay, 1984: 93). Na
Dialética do Iluminismo, ele e Horkheimer desenvolvem uma complicada análise das ligações entre o anti-semitismo, a paranóia das massas, ilusões projectivas e homossexualidade, que ajudam a explicar a “mentalidade dos rótulos” da era pós-guerra, quando os judeus já não eram objecto de paranóia. “Elementos de anti-semitismo”, a secção teórica da
Dialética do Iluminismo, escrita com a ajuda de Leo Lowenthal, foi completada indirectamente pelo trabalho do Instituto num projecto ambicioso.
Para Adorno, o dadaísmo e o surrealismo não tiveram as consequências libertadoras esperadas. A nova sujeição da arte ao mundo das mercadorias e ao papel de porta-voz da ideologia dominante (confrontar o actual papel desempenhado pelo mecenato cultural) constituem escravidão idêntica ao antigo jugo teológico (
Teoria estética, p. 284) [não incluo aqui as suas análises sobre o cinema e a rádio. A edição de 2003 da Angelus Novus, com os textos todos de Adorno,
Sobre a indústria da cultura, e a introdução de António Sousa Ribeiro ajudam a compreender o seu pensamento]. O único movimento moderno que teve a total simpatia de Adorno seria o expressionismo (Jay, 1984: 130), corrente poderosa na Alemanha e na Áustria da sua juventude. Embora não se tenha envolvido tanto como Bloch, que manteve um debate com Lukács sobre as implicações do expressionismo nos anos 30, Adorno defendia o mesmo modelo. Idêntica posição era tomada por Horkheimer.
Podemos detectar quatro pontos fundamentais em Adorno sobre a arte (Jay, 1984: 155)
1) Momento mimético na arte e relação com a beleza natural
2) Desestatização da arte e relação com a modernidade
3) Ideia da experiência estética e relação com a teoria
4) Conteúdo real da arte e relação com a autonomia
Para Adorno, há duas possibilidades de mimese: imitação da realidade social corrente; realidade natural transformada pelo social (Jay, 1984: 156). Ele considera que a arte genuína contém os dois tipos de mimese. A mimese estética contém também um momento utópico, o que leva Adorno a afastar-se da superação hierárquica hegeliana da arte pela religião e pela filosofia. E, apesar do seu cepticismo perante o gosto e juízo subjectivo kantiano, Adorno sente-se atraído pela beleza natural, que Hegel considerava inferior ao ideal de beleza artificial. A beleza natural representava a dependência do homem num objecto que não é da sua criação; é um paradigma da não-identidade baseado na relação homem e natureza. O projecto emancipador da humanidade, sob os auspícios do materialismo dialéctico, aparecia igualmente na concepção benjaminiana da cultura de massa (Jimenez, 1983: 87).
Contrariamente a Adorno e Horkheimer, para quem a indústria cultural e a produção de bens culturais constituem uma esfera da reificação total, Benjamin – que ignorava os trabalhos que deram origem à
Dialética do Iluminismo – acreditava na função progressista, politicamente falando, dos meios de reprodução mecanizados aplicados ao domínio da arte. Desligando-se do tipo de discurso de que há apenas uma única forma de falar de arte e de estética, Benjamin leva-nos a uma interrogação sobre outros discursos, sistemas, teorias e doutrinas, críticas ou não, inseridas no mecanismo de reprodução e acumulação culturais, mecanismo de produção e difusão de um saber estético (Jimenez, 1983: 88).
Durante mais de dois séculos, a estética foi “positiva”, talvez porque os estetas não tinham ainda dispositivos críticos elaborados para pôr em causa a coerência do sistema. A estética e a filosofia eram “positivas” e “afirmativas”: “positiva” no sentido em que pretendia um saber cuja matriz se traçava com a ajuda de conceitos; “afirmativa” porque, elemento de uma cultura que não podia negar a legitimidade, participava no seu desenvolvimento e expansão (Jimenez, 1983: 89). Estas duas determinações – positividade e afirmação – impõem-se como tais na filosofia ocidental na época da Aufklärung, e são contemporâneas do surgimento do termo “estética”, definido como a ciência da beleza e da arte. A produção industrial dos bens culturais, na sociedade moderna, aparece como uma confirmação definitiva da crise de autonomia burguesa da arte (Jimenez, 1983: 185). A Dialéctica da razão parece antecipar as aporias da Teoria estética: a ideia de uma obra de arte avançada cujo carácter progressista dependia da evolução das forças produtivas técnicas entra em contradição com a concepção da racionalidade como geradora da reificação e do domínio.
A Dialéctica da razão deixa uma estreita margem à construção da estética, principalmente na elaboração de uma estética da modernidade. O episódio das Sereias prefigura a aventura da arte moderna e anuncia o que será o seu modo de existência específica na época contemporânea. Ulisses possui o privilégio de perceber a beleza do canto e de poder decifrar, para além do fascínio que exerce sem poder comunicar, o seu verdadeiro significado. A arte moderna é hermética, e o seu esoterismo exige o pleno mergulho na coisa em si (Jimenez, 1983: 186). Qualquer atitude para além da atitude contemplativa, irremediavelmente separada da prática, mostra-se inadequada. Nostalgia, recordação da natureza, imagens idílicas de um passado acabado dificilmente rompem a máscara cínica da dominação. A industrialização da arte e da cultura testemunha a crise da autonomia burguesa e da “regressão” irreversível da “razão na ideologia” (
Dialética do esclarecimento, p. 19).
Leitura principal: Max Horkheimer e Theodor W. Adorno (1985).
Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Segui também a edição francesa:
La dialectique de la raison, 1989, Paris: Gallimard
loading...
-
Coordenadas Do Pensamento De Adorno (i)
O pensamento de Adorno é adverso à ideia de sistema fechado, caso da Teoria Estética, que sofre o desmembramento próprio da fragmentação – tem uma construção paratática (a parataxe ou coordenação é uma construção em que os membros se...
-
IndÚstria Cultural Em Adorno
Adorno e Horkheimer usaram o conceito indústria cultural pela primeira vez em 1947. Quarenta anos depois, Adorno revisitava o conceito ("A indústria cultural", 1968, impresso no livro coordenado por Gabriel Cohn Comunicação e indústria cultural,...
-
Notas Para Uma Aula De Teoria Da ComunicaÇÃo (10)
Na Dialéctica do Esclarecimento (1985), Adorno ("A indústria cultural") escreve que, na cultura contemporânea, tudo tem um ar de semelhança. Cinema, rádio e revistas constituem um sistema: "Cada sector é coerente em si mesmo e todos o são no conjunto"....
-
INDÚSTRIAS CULTURAIS - I Para Theodor W. Adorno e Max Horkheimer (1978), a indústria cultural surge quando a cultura se mercantilizou, através do desenvolvimento tecnológico e da capacidade de reprodução. Os dois autores substituíram a expressão...
-
INDÚSTRIAS CULTURAIS EM THEODOR ADORNO - O SEU PENSAMENTO (I)
O texto que se segue foi produzido por mim há um bom par de anos (1986? 1992?). Tem, por isso, a patine do tempo - e a bibliografia de apoio é antiga. Mas acho apropriado para este blogue....
Coisas e Coisas