Coisas e Coisas


ZÉ MARIA E O PANÓPTICO

Fiz já aqui uma referência ao primeiro herói do Big Brother em Portugal. Foi na passagem de ano de 2000 que o Zé Maria (de Barrancos, uma vila quase esquecida do Alentejo profundo, a entrar em Espanha) ganhou o concurso. Figura simples, tendo como profissão original a de servente de pedreiro, o concorrente ganhou notoriedade por duas simples frases que enunciava frequentemente – como se fosse o soundite da mensagem política ou o slogan da mensagem publicitária – e por desenvolver uma das duas características dos portugueses (a manha; a outra é o desenrascanço, que se viu depois ele não possuir). Associado à manha de não se meter nos assuntos dos outros, ele cultivou o gosto de tratar de umas galinhas que a produção do reality show lá colocou. Mostrou ainda uma paixão meiga por uma das concorrentes, que apareceu logo ali a não corresponder.

A ascensão do homem de Barrancos representaria a vitória do mundo rural sobre o da cidade. No cômputo geral, ele ganhou €100 mil (na moeda de então, vinte mil contos) e um automóvel Kia Suma, mais o direito (e obrigação) de ir a festas e cobrar dinheiro por isso, entrando ainda num anúncio de televisão e outdoors. Por seu lado, a TVI, o canal de televisão que passa o Big Brother (BB), fez do programa uma das âncoras da sua passagem ao primeiro lugar das audiências em Portugal. As outras âncoras foram os noticiários sensacionalistas das 20 horas, a ficção portuguesa (destronando as telenovelas brasileiras) e o comentário político de Marcelo Rebelo de Sousa [adenda escrita às 12:27, após leitura das edições em papel dos jornais Público e Diário de Notícias de hoje: a TVI passará a transmitir os jogos de futebol da Superliga nos próximos dois anos, aposta considerada estratégica para Paes do Amaral, o patrão do canal].

Convencido de que conquistara o mundo, Zé Maria mudou-se para a zona residencial do Areeiro e abriu um restaurante, com outros colegas do BB, O Canto dos Pratos. Mas a competência dele não chegou para as encomendas e, provavelmente mal aconselhado, a sua vida de conhecido passou para um plano inclinado. Como Wharol dizia sobre o estrelato em geral, os quinze minutos de fama de Zé Maria estavam a chegar ao fim. Daí o feliz título da sua estória, ontem na revista Visão: Estrela Cadente.

Panóptico

Aqui entra o panóptico, que Foucault referia em Vigiar e punir. No caso do BB, o vigiar correspondeu a um ganho material e uma grande visibilidade pública ao cidadão Zé Maria (assim, com nome próprio mas sem o nome de família). A vigilância foi feroz, a TVI criou um canal próprio para os espectadores seguirem minuto a minuto o que os residentes naquela casa faziam. E sabe-se que o director-geral da TVI terá atrasado a saída de um avião por estar a negociar a emissão de uma cena da relação sexual que entretanto aconteceu. O pico de audiência na TVI justificara a decisão do dirigente da televisão, que mandou às malvas qualquer questão moral.

Mas Zé Maria não se livrou do panóptico. Regressado à vida “real”, e enquanto era fotografado para as revistas cor-de-rosa, que deram um espaço às figuras anónimas do povo, apareceram novos amigos ao jovem de Barrancos. Uns aconselhando num sentido, outros noutro. O pobre deve ter ficado embaraçado com tantas opiniões divergentes. Mas sempre com os fotógrafos às costas e as revistas de mexericos mostrando o que fazia e não fazia.

Agora, o pretenso suicídio, relatado pelo Correio da Manhã, e a entrada no hospital Curry Cabral (ala dos doentes com problemas mentais), relatado pelo 24 Horas, mostra o quanto a vigilância não premeia mas pune. Resta agora que a sua vida – embora sem a espessura de outras estórias, como a da Dona Branca (a banqueira do povo) ou a do capitão Roby (um grande sedutor) – passe a filme ou série. A TVI tem certamente isso em mente. Ficava bem aos responsáveis do canal. O actor principal deverá ser, claro, Zé Maria, ele próprio! O realismo televisivo assim o exige.



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