Coisas e Coisas
ANDREY TARKOVSKY E CLINT EASTWOOD [para Alexandra Barreto, do blogue seta despedida]
1)
Escrevo de memória sobre Andrey Tarkovsky. Vi
Andrei Rubliev (ou
Andrei Rublyov),
Nostalghia e
Stalker na primeira metade da década de 1980, num cinema provavelmente já desaparecido do Porto. A água (em jorro ou em pingos, a que a montagem sonora dava mais relevo), o fogo (ou as velas em
Nosthalgia), o caminhar circular dentro de um vagão de reparações num espaço estranho guardado por soldados e máquinas de guerra (
Stalker), ou a pintura que se redescobre passando do preto e branco para a cor em
Andrey Rubliev, fizeram-me apreciar aquele cineasta russo, prematuramente desaparecido. Aquando da sua morte, eu interroguei-me sobre a injustiça da perda de alguém que prometia - se não um corte epistemológico no cinema - um repensar da estética: os temas, as inquietações mentais, os planos cinematográficos, a ligação entre cinema, literatura, pintura e música (ou sonoridades). Lia avidamente o que ele e dele se dizia. Ficou uma memória - a que, como em qualquer biografia pessoal, eu juntei as minhas próprias vivências, leituras e amizades da época.
2)
De Clint Eastwood, mantenho uma memória antiga de intérprete de filmes ligeiros, que se consomem e se substituem pelo próximo. Se quisermos, a aplicação da mcdonaldização ao cinema. Eastwood aparece-me como o protótipo de intérprete de
cowboy, sujeito de pensamento rápido mas superficial. Logo: longe da metafísica ou das questões de consciência estética e moral de Tarkovsky. E sem sequer o crédito de ter morrido cedo e longe da sua pátria, que o amava pouco na altura do seu desaparecimento (vivia na Itália, que o protegeu).
Mas Clint Eastwood tornou-se, ele também, alguém que faz filmes a reservar na memória. Trabalhando gente comum (pessoas vulgares), que tem profissões quase no extremo inferior: polícias, antigos bandidos ou gente que trabalha num sítio sem qualquer atractividade mas pela necessidade vital do dinheiro. Foi o caso de
Mystic River. Se quisermos, na narrativa do filme, o único rosto feliz e despreocupado acabaria por desaparecer assassinada. Já no filme mais recente,
Million dollar baby, o realizador volta a entrar no nível mínimo da subsistência humana. Uma candidata a pugilista vale muito menos que uma discreta empregada de mesa. É neste fio da navalha (a expressão vale o que vale) que eu vejo a grandeza do filme.
3)
Em Portugal, os temas de Tarkovsky e Eastwood são, com toda a certeza, alheios ao nosso modo de pensar ou agir. Excêntricos, no sentido de fora do centro das nossas preocupações. Mas em ambos há pontos comuns: o olhar os rostos, o perder-se na imensidão da matéria. Já quanto ao sentir religioso não poderei equiparar ou distanciar, pois ele é permanente em Tarkovsky e pontual em Eastwood. E noto óbvios pontos divergentes: no russo, o cinema é artesanato, sentimento profundo na construção de cada plano; no americano, o cinema é indústria, os planos obedecem a um ritmo da cultura do seu país, o tema é próximo das pessoas comuns. No russo, a aproximação ao destino incompreendido dos indivíduos, que lhe reservam um olhar místico; no americano, uma quase aceitação pragmática desse destino incompreendido.
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