Coisas e Coisas


AINDA AS JORNADAS DOS DEZ ANOS DE JORNALISMO DIGITAL EM PORTUGAL

Daniela Bertocchi e Sérgio Denicoli publicaram o texto Jornalismo digital. A internet e o declínio dos jornais no sítio do Observatório da Imprensa brasileiro, com uma leitura sobre as jornadas realizadas a semana passada na Universidade do Minho. Dos jornalistas presentes, e segundo o texto agora editado, "talvez uma das maiores frustrações destes 10 anos de jornalismo digital tenha acontecido no âmbito editorial. Muitos dos debatedores concordaram em que pouco se avançou em termos de linguagem ciberjornalística, apesar de insistentes falatórios em torno das potencialidades hipertextuais, interativas e multimidiáticas do meio".

Ainda de Daniela Bertocchi, e sobre a mesma temática, também foi publicada no Observatório da Imprensa uma entrevista a Ramón Salaverría, com o título A tecnologia não é inimiga. Como pano de fundo, o livro recente do professor da Universidade de Navarra, Redacción periodística en internet (Eunsa, 2005) [dicas de Manuel Pinto, no Jornalismo e Comunicação de hoje].

Sem me sobrepor à leitura total da entrevista a Salaverría - aconselhável -, proponho dois pequenos excertos: "Na minha tese de doutorado analisei três mil obras sobre redação. Entre elas, 1.500 manuais propriamente ditos. Peguei desde as obras do século 18 até o fim do século 20. A conclusão que cheguei é que aquilo que se sugere como uma boa redação em termos de estilo é o mesmo há três séculos. E Aristóteles é uma referência brilhante. Ele já dizia há 25 séculos que os elementos desnecessários deveriam ser eliminados da redação, já que o que é supérfluo é negativo. Uma referência clara de que a concisão exige a máxima densidade informativa. Disso já sabemos. Para o caso particular da web, precisamos então ir além". Mais à frente, à pergunta da entrevistadora sobre o que os jornalistas devem ter em conta quando escrevem para a web, Salaverría respondeu: "Em poucas palavras, a essência é ter em mente que o estilo jornalístico permanece, como dissemos. E procurar configurar seus conteúdos segundo as novas possibilidades hipertextuais, interativas e multimídia que o meio oferece. Não se trata de renunciar completamente ao passado, mas abrir os olhos às novas possibilidades".

Uma reflexão sobre as tecnologias e as indústrias culturais

Em Braga, Salaverría falaria de tecnófobos e tecnófilos, os primeiros com horror quase epidérmico às tecnologias (disfóricos) e os segundos uns optimistas que crêem na bondade de qualquer tecnologia (eufóricos). Parece-me que o mundo se tem pautado entre estes extremos, embora a maior parte de nós se situe num espaço intermédio desses pontos.

O discurso tecnológico recorre com frequência à imagem do progresso e do bem-estar. Os cientistas, até ao começo do séc. XX, não aparentavam ter dúvidas quanto à bondade das suas pretensões. Vivia-se numa postura positivista e racionalista. A public understanding of science seria o corolário dessa visão, em que se procurou transmitir, sem a linguagem dura das disciplinas científicas, para várias camadas da população, os sucessos dessas actividades. Cientistas e jornalistas colaborariam na divulgação da ciência.

A bomba atómica, os acidentes nucleares e químicos, a poluição, o enriquecimento e a tomada de posições políticas por parte de cientistas cujo princípio seria contribuir para o bem estar geral e não a procura do lucro como principal objectivo, tornaram problemática a colaboração entre cientistas e jornalistas. Agora, a profissão do jornalista está, ela mesma, ameaçada pela tecnologia. Melhor dizendo: as competências serão modificadas pela tecnologia. Dentre estas, destaque para a necessidade de manipular programas, usar uma linguagem diferente da produzida até agora (mais curta e incisiva), empregar novas fontes de informação, escrever no sentido do imediato.

O discurso dominante em Braga foi o tecnológico. Faltou algum distanciamento sociológico e histórico. Na minha perspectiva, sem isto não é possível ter-se um domínio completo da realidade. Por exemplo, quando se fala do perfil do jornalista, para além das competências tecnológicas - que os jovens saídos da universidade já possuem, pelo que o recado é dirigido aos jornalistas mais velhos -, não se pode escamotear a importância de áreas de saber diferenciados. Falo de, entre outras disciplinas, de literatura, história, ciências exactas (física, matemática, medicina, biologia), economia, ciências políticas, cultura. Os jovens que entram nas redacções dominam linguagens informáticas e técnicas de recolha de informação mas precisam de ter uma visão do mundo, que os cursos de banda estreita e curta duração (três anos) não dão. E como é feita esta formação?

Há uma outra questão, que tem ocupado uma parcela das reflexões neste blogue, que se prende com as mutações profundas que as tecnologias digitais conferem ao conjunto das indústrias culturais. Do livro ao cinema, da indústria discográfica ao jornalismo, as cadeias de valor, as estruturas empresariais e as competências profissionais estão todas em discussão. E em muitas a indefinição é tão grande ou maior que no jornalismo. Veja-se na rádio e na indústria discográfica, com o iPod e MP3 [imagem da campanha actual da Samsung sobre os MP3 portáteis: Agora, és tu quem mexe a música. Imagem colocada às 19:05]. Não deixa de ser curioso que a entrevista de Ramón Salaverría a Daniela Bertocchi, disponível na internet (meio digital), tenho por base a reflexão sobre um livro (meio analógico) recentemente editado. Prometo voltar ao tema.



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