Coisas e Coisas


O LIVRO DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES

loboantunes.jpgD'este viver aqui neste papel descriptivo é um livro de amor que decorre com a guerra colonial como pano de fundo. Os aerogramas (ou cartas) que o alferes miliciano Lobo Antunes mandava para a mulher Maria José (Fonseca Costa) Lobo Antunes são a expressão do amor à distância e relata o dia a dia da vida de um militar destacado em Angola durante a guerra, no caso dele entre 1971 e 1973.

O livro lê-se como um romance pleno de acção, mesmo que muitas das cartas contenham versões minimais de outras. A repetição das cartas tem a ver com a monotonia dos dias, longe dos familiares e dos amigos queridos e afastado do conforto de uma cidade (Lisboa), onde o autor vivia. Mas há três ou quatro temas que, embora se repetindo ao longo das cartas, ilustram uma progressão. É como a nossa vida quotidina: fazemos gestos semelhantes todos os dias, mas vamos alterando um pouco esses gestos, porque envelhecemos ou ganhamos experiência.

A saudade da mulher (e da filha que vai nascer aqui em Lisboa quando ele está lá longe, em Gago Coutinho - o nome de então de uma vila angolana perto da fronteira com a Zâmbia). Daí que as cartas comecem sempre com "minha jóia querida" e acabem com "gosto tudo de ti". Outra linha constante é a referência à sua necessidade de escrever, ele que debutava e seria bastante mais tarde reconhecido como grande escritor. Escrevia ele a 5 de Abril de 1971 (p. 117): "Tenho continuado a história, agora a caminho da página número 70, vamos a ver se consigo que fique boa". A 21 de Maio do mesmo ano (p. 171): "Entretanto lá vou empurrando a história para a frente". No dia 8 de Julho (p. 232) escrevia: "Acabada a primeira parte, eis-me a trotar na segunda".

O atraso de correspondência era outra constante da vida do seu dia a dia: "Desde 4ª feira passada (hoje é 3ª) que não recebo notícias tuas e que nada sei a teu respeito" (6 de Abril de 1971, p. 118) . Muitas vezes, considera que o amor entre ele e a mulher está a chegar ao fim, pois ela não lhe responde. Mas das suas cartas percebe-se que ela se queixava do mesmo. Cada aerograma demorava muitos dias, devido aos circuitos complexos de correio no interior de Angola. Hoje, tais lamentações não seriam possíveis, graças ao telemóvel e, em especial, a internet [há poucas semanas, uma reportagem de televisão mostrava os soldados destacados em missão internacional no Afeganistão com uso de internet e envio de imagens fotográficas. O tempo de demora reduziu-se a instantes].

loboantunes9.jpgO dia a dia sem motivos novos levava a um remoer constante das mesmas ideias. Mas o autor não assumia que nelas pensava todos os dias: "Há muito que não falo da criança [a mulher ficara grávida quando ele embarcou para Angola], mas tenho pensado muito nela" (26 de Abril de 1971, p. 140). Lobo Antunes abordara a situação no dia anterior. Depois, é o seu conselho quanto ao nome da criança a nascer; querendo uma rapariga, propõe o nome de Maria José, o que virá a acontecer [a imagem reproduz parcialmente uma página do JL - Jornal das Letras, de 9-22 de Dezembro deste ano, com o escritor rodeado das duas filhas. A mulher, de quem se separaria depois, faleceu há sete anos, vítima de cancro, pedindo às filhas que, um dia, publicassem esta correspondência, o que aconteceu agora].

Um tema marginal, mas que retoma com alguma regularidade é o da compra de bebidas brancas a preços baixos: "A propósito de oficiais, cada um tem direito por mês a 3 garrafas, duas de uísque e uma de conhaque, de marcas estupendas, a preços de cerca de 100$00. [...] Embora não goste de nada disso (e tenho pena) ficamos cheios de alcoóis para os visitantes do nosso quimbo" (carta de 29 de Março de 1971, p. 109. Quimbo em umbundo, a língua da região, significa casa)garrafas1.JPG [na imagem, embora não muito perceptível, lê: "Uso exclusivo das Forças Armadas"]. Já a 20 de Janeiro de 1972 (p. 338), dá conta de uma alteração: "já não vendem mais garrafas aos senhores oficiais, por aqueles preços convidativos". E, por mais de uma vez, conta que militares de visita a Portugal serão transportadores de algumas dessas garrafas.

Retenho ainda da leitura do livro: 1) o conhecimento que ele adquiriu com o capitão Ernesto Melo Antunes, comandante de uma das companhias do seu batalhão (certamente aí colocado depois de, em 1969, ter sido o único oficial das Forças Armadas portuguesas a fazer parte de uma lista oposicional à linha do regime, ele que seria um dos oficiais do 25 de Abril de 1974 e que assumiu uma posição de liderança, com o Documento dos Nove, uma posição moderada após a radicalização à esquerda do regime em 1975 e 1975. Melo Antunes, homem culto, emprestava livros e revistas como o Nouvel Observateur e jogou xadrez com Lobo Antunes, ensinando-lhe várias entradas, como o livro indica); 2) a tomada de consciência política (apesar de, numa primeira fase, parecer favorável à situação, vai-se distanciando da posição oficial); 3) a leitura das bibliotecas (fracas) dos outros colegas quando os seus livros já tinham sido lidos; 4) os boatos (ficar na frente de combate todo o tempo da comissão e não rodar para um sítio mais calmo; uma segunda comissão); 5) as mortes de soldados, a que se acresce o facto de, como médico, acompanhar todos esses casos de modo directo.

O dia em que me cruzei com António Lobo Antunes

Escrevi uma mensagem com este título, a 10 deste mês. Na página 334 do seu livro, ele relata que passou em Dala, a caminho de Malange. Eu estava destacado nessa altura na pequena vila banhada pelo rio Chiumbe. Como ele não demorou senão duas horas na localidade, deixo aqui alguns pormenores de Dala (talvez ele descubra o meu blogue e fique mais elucidado sobre esse local, 33 anos depois). Afinal, os temas que ele trata no livro são-me familiares; e, como se escrevia no Público da semana passada, iria haver leitores que se aproveitariam dessa leitura, o que acontece comigo.

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