O Bilhete
Coisas e Coisas

O Bilhete






A frase ficou martelando na minha cabeça. "Eu não fiz por mal." Tão simples, não é? Fazer o que se faz e depois, deixar uma frase dessas num bilhete de suicídio. Como se uma frase pudesse apagar todo o passado. Como se uma frase pudesse mudar a perspectiva de como nos lembramos das coisas. Como se uma frase pudesse fazer com que eu me esquecesse das noites...

"Eu não fiz por mal."

Então, por que fizemos? Afinal... eu era tão pequeno... tão indefeso e... tão... indefeso. Porque hoje, olhando para trás, eu sei que o que você fez não é normal. Não. Ninguém deveria passar por tal situação. Eu achava, na época, que se aquilo acontecia comigo é porque eu merecia. Eu achava que eu deveria ter feito algo para que você... Eu lembro, como se fosse hoje, da maneira como você me dizia "Você quer, não quer?" e eu tentando dizer não... não sei... tentando entender porque é que eu deveria querer aquilo.

"Espero que um dia você entenda..."

Não. Eu não vou entender. Eu nunca vou conseguir entender. Eu não quero entender. Eu nunca vou saber por quê... hoje eu também... Não é tão simples. É algo que eu quero esquecer, mas não consigo. Eu tentei levar minha vida adiante. Me formei advogado. Fiz curso para magistrado. Achava que, julgando outros como você, eu poderia reparar o estrago que você me fez. Eu queria contribuir. Me tornar útil. Ser diferente...

No primeiro julgamento em que eu atuei, eu queria sair do meu lugar e espancar aquele filho-da-puta que estava na minha frente. Quando eu vi as fotos das crianças e ouvi os seus depoimentos, eu vomitei. Isso... simples e corriqueiro, não é? Eu vomitei durante os 45 dias do processo. Eu perdi 07 kilos e meio. Eu odiei aquele réu com todas as minhas forças. Eu fiz tudo o que eu podia para com que ele fosse condenado.

"A verdade é que eu te amo... sempre amei..."

Amor! Uma palavra tão traiçoeira e que serve como desculpa para muitas coisas. Por amor nós fazemos as coisas mais cruéis. Por amor, nos sentimos livres... e irremediavelmente presos. Dizem que existe uma doença que faz com que nos apaixonemos por nossos algozes. Dizem que algumas pessoas passam o resto da vida apaixonadas por aqueles que lhes fazem mal. Não sei. Não é amor o que sinto por você. Também não é ódio. Talvez seja apenas um rancor... talvez seja apenas...

"... e quando percebi que você iria ficar livre, não pude deixar com que isso acontecesse..."

No dia do veredicto, eu sabia que tudo isso acabaria. Eu sabia que eu, finalmente, poderia ser livre. Mas não havia provas suficientes! Não havia provas!!! E como vai haver provas? Como vai se provar que, quando você dormia comigo, aconteciam coisas muito mais... Não havia provas. Eu olhei para ele e vi que ele sorria. Ele sabia que iria escapar. Eu não sei como, mas eu sabia que ele sabia... Eu mesmo tive que pronunciar o veredicto. Caso encerrado.

"...você deveria me procurar e me pedir perdão, mas como isso não aconteceu.... eu vim até você!"

Enquanto eu dizia essas frases eu me lembrava das crianças... me lembrava da cama... me lembrava de... ao mesmo tempo em que pronunciava o veredicto que te libertava eu pronunciava, internamente, tua sentença de morte. Você iria morrer... custasse o que custasse. Mesmo que fosse preciso...

"Eu não fiz por mal... mas você mereceu!"



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