Simplesmente Maria foi um folhetim radiofónico transmitido pela Rádio Renascença entre 1973 e 1974 (aqui referi a recente passagem de documentário na SIC, assinado por Isabel Osório, no que parece ser uma reapropriação, revivalismo ou reavaliação da cultura popular de massas da década de 1970). Agora, é tema de uma peça de teatro pelo grupo
A Curta, A Comprida e a do Meio, jovens que ainda não eram nascidos nessa época mas que a recriam num texto de Mirró Pereira, com direcção de projecto de Gisela Duque Pereira e direcção de cena de Joana Barros.
Na peça agora estreada pelo grupo
A Curta, A Comprida e a do Meio, acolhido pelo Teatro A Barraca, a Santos (Lisboa), há, sobre a história do folhetim radiofónico, uma outra história em torno dos intérpretes da novela. Do folhetim, salienta-se Maria (Carolina Parreira), recém-chegada da aldeia, que procura emprego em Lisboa, no começo da década de 1970. Conhece Maria Albertina ou Dona Zéza (Ana Lopes Gomes), a dona da casa onde se hospeda, e Arminda (Joana Barros). Com esta partilha o quarto e vai trabalhar num escritório como empregada da limpeza, onde conhece Eduardo (Daniel Moutinho), por quem se apaixona, e o irmão deste, Artur (Pedro Luzindro). Maria, que entretanto muda de profissão e abre uma loja de reposteiros, como que ascendendo socialmente, acaba por ser preterida por uma outra mulher e aproxima-se de Artur, mas o casamento com este é impedido pelo irmão Eduardo que o fere com uma arma de fogo. A história do folhetim aproxima-se muito das histórias de fotonovelas e radionovelas da época, muito piegas e em que os homens têm mais liberdades e oportunidades que as mulheres.
A história da peça narra as aproximações sentimentais dos artistas que representam as personagens da radionovela. Maria Amélia (Carolina Parreira) e Henrique (Daniel Moutinho) tiveram uma relação amorosa mas desfizeram-na, com aquela a aproximar-se Tony (Pedro Luzindro), mas só para fazer inveja a Henrique. Tony apaixona-se verdadeiramente por Maria Ana (Joana Barros). Duas outras personagens, artistas extra radionovela, são o sonoplasta (Bernardo Gavina) e Hermínia (Sofia Ramos) [as imagens abaixo foram retiradas da página de Facebook do grupo teatral e da folha volante distribuída com a peça; os cartazes têm design de Patrícia Guimarães].
O que mais me agradou ver na peça foi a reconstituição de uma sala de estúdio de rádio na época retratada, nomeadamente os cuidados postos na gravação (e os sinais cúmplices dos artistas com uma régie atrás dos espectadores, como se estivessem a reconhecer o bom trabalho de registo) e no trabalho da sonoplastia. Fico-me neste. À época, ou alguns anos antes, com mais propriedade, os sons de ambiente eram gravados na altura do registo. O sonoplasta tinha de inventar os sons: tacões de mulher a andar depressa, porta a abrir e fechar, colher em chávena para indicar o café que se bebia, apito para sugerir comboio a partir, teclar telefone para fazer pensar em chamada telefónica. Esses sons eram bem imitados e sugeridos pelo sonoplasta, primeiro com Pedro Luzindro e depois com Bernardo Gavina.
Os sons, aliás, constituem uma presença determinante na peça, ou não fosse ela a recordação ou reconstituição de um folhetim radiofónico. De um relato de futebol com Artur Agostinho a um discurso pela rádio por Salazar, música da época (Beatles [Blackbird singing in the dead of night, take these broken wings and learn to fly / All your life, you were only waiting for this moment to arise / Blackbird singing in the dead of night, take these sunken eyes and learn to see / All your life, you were only waiting for this moment to be free / Black-bird fly / Black-bird fly, into the light of a dark black night], Simone de Oliveira, Paulo de Carvalho, outros) e sons da revolução de Abril de 1974, a marcar o quase final da radionovela. No intervalo da peça, são sorteados dois prémios: um sabonete Ach Brito e um conjunto de costura da Coats & Clark. Logo: mais um sinal de verosimilhança com os sorteios realizados na rádio na época retratada pela peça, no sentido de estabelecer uma maior empatia com a audiência, os ouvintes.
Embora de uma geração anterior a
Simplesmente Maria, o outro grande êxito de radionovelas em Portugal foi
A Força do Destino (1956), mais conhecido pelo folhetim Tide da Coxinha [Tide era a marca de detergente patrocinadora do folhetim], transmitido pela Rádio Graça.
Em entrevista sobre o seu trabalho, disse o sonoplasta Octávio Frias, responsável pelos efeitos sonoros de
A Força do Destino: "Muito trabalho com episódios, de 230 e tal episódios, fazendo a montagem. Começámos, por exemplo, à quarta-feira às dez da noite e acabávamos aí às quatro ou cinco a gravar só a parte de interpretação. E depois era feito comigo a parte de sonorização, de montagem, de ruídos que, naquela altura, eram muito difíceis de arranjar. Tínhamos por vezes de fazê-los diretamente e depois eram feitas as cópias para os Emissores Associados de Lisboa e Rádio Clube Português e Emissores Norte Reunidos" (entrevista conduzida por Luís Garlito, para o programa da RDP
A Minha Amiga Rádio, 28 de Setembro de 1993; Arquivo da RTP AHD 14919). Muito curiosamente, o sonoplasta Octávio Frias, falecido no final de 2012, casou-se (na vida real) com a estrela da radionovela Lily Santos. A cunhada desta fazia o papel de má da história, enredos afinal parecidos com as histórias ficcionadas e que também podemos observar na peça do grupo
A Curta, A Comprida e a do Meio.
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