Coisas e Coisas
Sangue na guelra
O cenário é mínimo: duas cadeiras, um homem (Graeme Pulleyn) e uma mulher (Rafaela Santos). Fernando Giestas (1978) é o autor da peça chamada
Sangue na Guerra/Guelra/Guerra (2011) e publicada na colectânea "Oficina de Escrita Odisseia: Textos Escolhidos", uma edição do Teatro Nacional São João (2011). Ele lembrava a sua ida de barco para muito longe, num mar imenso, para um país que não era o seu mas podia ser o seu. E recordava que encontrou mulheres de olhos negros e pele semelhante. Ele teria dezoito, vinte anos. Ela lembrava a chegada de tantos homens, jovens e de bigode, de olhos claros e pele semelhante. Sabia que eles vinham de outro sítio com outra cultura. A mulher de olhos negros ou o homem de olhos claros aproximaram-se, começaram a ir à praia, ao cinema, apaixonaram-se.
Um dia, os homens, armados, levantando uma enorme nuvem de poeira, aproximaram-se da aldeia. Eles queriam que elas fugissem. Estas ficaram de pé, à espera que a poeira assentasse no chão, e viram os pais, os maridos e os filhos tombarem pelas balas saídas das armas. Era a guerra. O sangue na guelra (juventude, inquietude) tornara-se sangue da guerra. O país que não era o dele mas podia ser dele deixava de o ser.
O curto texto de Fernando Giestas foi sendo repetido, em diferentes ângulos da sala, com os corpos dos actores expressando outros sentimentos. O encenador Rogério de Carvalho quis que os actores fossem também co-autores do texto. Como quem conta a memória, histórias passadas a gente presente, como se um casal lembrasse o que tinha acontecido quarenta anos atrás. Na representação, senti algo tirado do neo-realismo, dos quadros de Picasso, das tragédias gregas. A música, não identificada no programa, enquadrava o dramatismo dos corpos que tinham perdido a felicidade e a que, agora, só restava a recordação.
Lembrei-me da guerra entre Israel e a Palestina, mas a história não se encaixava porque não há mar longínquo entre os dois países (ou territórios). Tive de ajustar a minha própria memória. Senti-me comovido. O barco demorou oito dias a chegar de Lisboa a Luanda. Sempre tortilha ao almoço e ao jantar. Havia quem aproveitasse o tempo a jogar cartas, algo que nunca me seduziu (os jogos que aprendi, esqueci logo a seguir). À chegada, havia um velho comboio puxado a locomotiva de carvão, a única viagem que fiz num comboio desse tipo.
Fernando Giestas e Rafaela Santos são fundadores da Amarelo Silvestre/Magnólia Teatro, a partir de Canas de Senhorim (2009). A peça, agora representada no Teatro Meridional, foi escrita sob orientação de Jean-Pierre Sarrazac. Ver apresentação da peça aqui.
loading...
-
Começar A Acabar, De Beckett, Por João Lagarto
O velho estava à espera da morte. Talvez dentro de uma ou duas semanas, no próximo mês ("Em breve estarei morto finalmente apesar de tudo"). Já não veria passar as festas, como a Assunção. É um longo solilóquio de um homem marginal, sem abrigo,...
-
A Guerra Colonial Em Teatro
O texto teatral parte do livro de Jaime Froufe de Andrade, Não sabes como vais morrer (4ª edição em 2013), com dramaturgia e encenação de Pedro Estorninho e interpretação de José Topa, Paulinho Oliveira, Pedro Estorninho e Pedro Roquette, teve...
-
Adivinhe Quem Vem Para Rezar
O homem (Jorge Loureiro), de cerca de quarenta anos, entrou na igreja para a missa de sétimo dia do pai. Ao fim da tarde abatera-se sobre o local um grande temporal. Ainda não chegara ninguém, nem a mãe, até que entrou o velho sócio do pai. Em tempos,...
-
Mostra De Teatro De Almada
A 14ª edição da Mostra de Teatro de Almada inicia no dia 5 de Fevereiro (Fórum Municipal Romeu Correia, Almada), às 21:00, com a presença dos actores Rita Lello e Pedro Giestas, da Companhia de Teatro A Barraca (Peça para dois, de Tennessee Williams)...
-
Tambores Na Noite
O soldado Kragler regressa da guerra para o reencontro com Anna. Mas ela cansara-se de esperar e festejava o anúncio do casamento Friedrich Murk. Murk tornara-se próspero, vindo do nada, ao contrário do soldado, sem um vintém. Aos olhos dos pais de...
Coisas e Coisas