Michel Foucault publicou o livro
Raymond Roussel em 1963, faz agora 50 anos.
Não se deve ler o texto sobre Roussel por comparação ou complemento a História da Loucura na Idade Clássica (1961), o primeiro grande livro do filósofo francês, mas há uma aproximação a Nascimento da Clínica: uma Arqueologia do Olhar Médico, publicado também em 1963. Neste, regista-se uma mudança de perspectiva da patologia geral para a doença mental.
Ora, Roussel (1877-1933), poeta, escritor, autor de peças, músico e entusiasta de xadrez, descoberto pelos surrealistas como um seu antecessor, caso de André Breton, foi visto como louco. As edições de livros, as encenações dos seus trabalhos e a sua vida faustosa foram suportadas pela fortuna elevada herdada do pai, a ida de Paris para Palermo, onde acabou por morrer (ou ser assassinado), viagem extravagante mas decidida nos seus contornos finais por ele - comportaram sempre situações de desviante ou excluído ou marginal. Tudo assuntos que interessaram a Foucault.
Por isso, ao contrário de outros analistas, Foucault não olhou Roussel através da loucura mas pela leitura da obra, de forma distinta da do psiquiatra Pierre Janet, que conhecia o caso, e da de Michel Leiris, autor muito próximo de Roussel. Este, aos olhos de Foucault, aparece-lhe como uma das vítimas da medicalização moderna da loucura. No primeiro capítulo sobre o autor de
Locus Solus e
Nouvelles Impressions, Foucault foi directamente ao seu último texto:
Comment J'ai Écrit Certains de mes Livres (1932), obra autorizada a publicar após a morte de Roussel, por vontade expressa deste, onde ele revela o segredo da sua escrita.
Este autor construíra um
modelo, um
procedimento ou jogos de linguagem, como diz Foucault, em que as palavras assumiam significados distintos sempre que colocados uns a seguir aos outros. Casos de
lettres (cartas epistolares ou letras gráficas) e
bandes (pano verde ou selvagens de uma tribo africana de um dos seus textos). Ou: vocábulos emparelhados que formam o eco sonoro de palavras nunca enunciadas (p. 39). Isto é um facto de linguagem, em que palavras idênticas dizem duas coisas diferentes (p. 12). O procedimento é uma espécie de purificação dos falsos acasos da inspiração e da fantasia para se colocar perante uma linguagem clara mas impossível de dominar, continua Foucault (p. 34), embora haja "alguns dos seus livros" estranhos ao procedimento (p. 83), como indicaria o próprio Roussel.
Dito de outro modo: as palavras são como que desviadas do seu sentido primitivo para adquirem um sentido novo (p. 13). É deste espaço de deslocamento que nascem as figuras da retórica: metonínimia, sinédoque, antonomásia, litote, metáfora, uma espécie de espaço tropológico do vocabulário. Depois, cada palavra está associada por um domínio de parentesco (p. 29) - do bilhar passa-se ao taco de bilhar, deste à sua incrustação de metal prateado, às iniciais de quem comprou o bilhar e o taco. Há, comenta Foucault, uma segunda navegação em torno dos objectos, uma narrativa repetida indefinidamente (p. 43), encarregada de restituir aos signos o significado (p. 44), com o labirinto ligado à metamorfose (p. 74). Os efeitos do duplo não deixam de se multiplicar (p. 47).
Além disso, há antifrases, como o desenhador que não reproduziu regularmente as malhas da rede sobre a escama do peixe, como se a função da linguagem duplicada estivesse no pequeno intervalo que separa a imitação do que imita (p. 20). Em
Chiquenaude, um espectador que conta a peça compôs um poema que um dos personagens vai recitar várias vezes no palco, mas sucede que este último fica doente pelo que é o seu substituto que lê (p. 22). Fala de objectos nunca vistos ou de máquinas nunca pensadas ou de plantas monstruosas (p. 39). O papel dessas máquinas é fazer passar: transpor obstáculos, atravessar reinos, derrubar prisões e segredos, vencer memórias adormecidas (p. 63). O teatro, os amantes surpreendidos, as substâncias maravilhosas, as personagens mascaradas, os objectos minúsculos, tudo faz parte do repertório de Roussel (p. 23).
Já em
Nouvelles Impressions, escreve Foucault, o autor emprega comparações, aproximações, distinções, metáforas, analogias, através de coisas e palavras, com repetições sem fim (p. 19). Nos textos de Roussel, há assim repetições, substituições, retorno do mesmo, diferenças imperceptíveis, desdobramentos, falhas fatais, meticulosidade e concisão, unir e reencontrar (p. 66). Melhor: imagens invisivelmente visíveis, perceptíveis mas não decifráveis (p. 48), em que há lugar privilegiado para a imitação (p. 67). A obsessão de máscaras, disfarces ou duplos e desdobramentos poderia encobrir o talento de imitador que desde cedo se notara nele (p. 141). Talvez por isso, Roussel aconselhasse os seus leitores a lerem a segunda parte das
Impressions d'Afrique antes da primeira, de modo a tornar legível o seu conto (p. 64).
Sobre a edição portuguesa
Impressões de África, publicada pela Relógio d'Água, retiro o que escreveu Eduardo Pitta (Da Literatura), romance que passou despercebido quando saiu em 1910: "Roussel, que influenciou os surrealistas, os dadaístas, os autores do futuro Nouveau Roman, bem como os artistas e poetas da Escola de Nova Iorque (Kooning, Ashbery e outros), era de opinião que o livro podia, e talvez devesse, ser lido de forma arbitrária, embora aconselhasse os amigos a começar pelo décimo capítulo".
Roussel vivia à espera de um reconhecimento pela sua obra que acreditava estar injustamente privado. Entende Foucault, em
Raymond Roussel, que este, na altura em que redigiu o seu primeiro livro, experimentou uma sensação de glória universal, não um desejo de celebridade mas de constatação física (p. 139). Pierre Macherey, o apresentador da obra de Foucault, lança uma hipótese sobre o que fascinou este ao escrever sobre Roussel, aliás a única obra sobre um autor, um comentário sobre alguém que produziu, contrário ao que ele próprio se dispusera (como se observa em
O que é um autor?, a que talvez eu um dia dedique algum espaço aqui). A hipótese é que Roussel consagrou-se a uma obra com tal disciplina, em que cegueira e lucidez parecem conjugar-se em obstinação, excesso e desmedida (p. XIX).
Vigiar e Punir (1975) vinha ainda longe, mas a disciplina dos corpos já andava na cogitação de Foucault. E o tema da sexualidade aprisionada fazia também parte do programa de Foucault, como a
História da Sexualidade confirmou.
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Orlando Raimundo, em António Ferro, o Inventor do Salazarismo, nada deixa de pé quanto ao intelectual orgânico do Estado Novo. Vaidoso, pretensioso, saloio ou provinciano, de origens modestas, que não olha às medidas estéticas do próprio físico,...
Tinha 73 anos, exercia ainda funções de editor executivo do gabinete editorial da Visão, revista de que foi fundador. No começo da década de 1960, frequentou até ao quarto ano a Faculdade de Direito de Lisboa, onde foi dirigente...
Foucault tem um olhar próprio sobre a História. Lemos dele textos acerca da história das ideias e da história natural. A passagem para o século XVIII é fundamental, considera, pois se forma um novo olhar e uma nova maneira de dizer. As palavras,...
Novo vídeo de Zut Zoé, a partir do concerto de Paris La Sorbonne em 4 de Junho de 2010. Zut Zoé: cantora, Laurent Roussel: guitarras, coros, Franck Dehaut: guitarras, teclas, coros, Pascal Fouquereau: baixo, teclas, Eric Fitoussi:...
Zut é uma interjeição que, em francês, significa nervosismo, receio. Zoé é um pronome feminino vindo do grego zoe ou zoï e que quer dizer vida ou existência, ou ainda uma grande vontade de acção ao lado de uma forte emoção. Zoé também pode...