Coisas e Coisas
PÚBLICOS DE CINEMA
Emmanuel Ethis publicou, em 2006,
Sociologie du cinéma et de ses publics, livro onde considera o cinema como a prática cultural mais popular e que atravessa todas as categorias sociais.
Dividindo os públicos de cinema em três categorias -
assíduos,
regulares e
ocasionais (p. 40) -, o autor francês regista duas localizações cinéfilas: 1)
afastada, constituida pelos festivais, um tempo de encontro e de temática (filme fantástico, curtas-metragens, policial), que remete para um tipo de sociabilidade, e 2)
ultra-proximidade, a do cinema em casa (com o DVD) e que remete para outro tipo de sociabilidade [nos seus textos, o Observatório de Actividades Culturais, de Maria de Lurdes Lima dos Santos, chamaria, respectivamente, prática cultura de saída e doméstica]. O cinéfilo reconhece especialmente os actores cuja carreira no ecrã coincide com o período de frequência mais intensa nas salas de cinema, entre os 18 e 35 anos (p. 109).
O capítulo mais interessante deste livro é, para mim, o que trata do cinema na cidade, em especial a sua arquitectura e sociologia de públicos (pp. 28-41). Diz Ethis que a história social do cinema é inseparável da construção, transformação e desaparecimento de salas de cinema.
Inicialmente, quando o cinema era espectáculo de feira e de saltimbancos, falava-se alto durante a projecção, mudava-se de lugar e aplaudiam-se cenas. Depois, para garantir o sucesso do novo cinema, a sala passou a ter uma arquitectura institucional - semelhante à da câmara municipal, teatro, escola, biblioteca, estádio ou, hoje, o centro comercial - e os seus responsáveis trataram de "educar" os públicos, significando códigos sociais mínimos. O neoclassicismo de alguns cinemas (fachada, interior) alargou-se a outros estilos (art deco, modernismo). É aquilo a que Emmanuel Ethis designa por
cine-palácios. Estou a pensar em alguns cinemas portugueses, como o Éden e o S. Jorge em Lisboa e o Coliseu no Porto. Então, ir ao cinema representava, para os seus públicos, prestígio que se aproximava do teatro ou da ópera.
Já os anos de 1970 marcariam nova alteração. As profundas transformações urbanas, através do desenvolvimento sistemático dos arredores das grandes cidades e da chegada de novos habitantes, trouxeram também os promotores das indústrias culturais. Dentro dos centros comerciais implantar-se-iam salas multiplexes, com várias salas num só sítio oferecendo vários filmes. Em Portugal, o ano de 1985 seria marcante (adesão à então CEE, no final do ano, primeiro hipermercado Continente, centro comercial das Amoreiras, começo do alargamento do conceito de auto-estrada). Ao mesmo tempo, instalava-se a ideia de "cinema permanente", com sessões contínuas. Era um rude golpe nos cine-palácios e, também, em cinemas de bairro e em associações como os cineclubes, cujos públicos se constituiam em torno do "cinema de arte". Isto sem falar na concorrência da televisão, a partir da massificação nos anos 1970 (em Portugal, mais precisamente em 1977, há trinta anos, a novela
Gabriela prendia a atenção do país inteiro).
Ethis chama a atenção para um pormenor interessante. No tempo do cine-palácio, circulava normalmente uma só cópia de um filme. Este apresentava-se em regime de exclusividade durante duas a três semanas, após o que ia para salas mais distantes do centro urbano, numa espécie de segunda exclusividade. Num terceiro tempo, as pequenas salas de bairro e das outras cidades recebiam o filme. Da exclusividade à distribuição poderia decorrer um grande período de tempo. Havia uma relação - quanto maior o sucesso do filme, mais tarde chegava às salas das pequenas salas e com a cópia muito estragada pelo número de exibições feitas.
Para acabar, destaque para a análise que Ethis faz às estrelas de cinema, as quais já ocuparam outro importante sociólogo francês, Edgar Morin. Cada geração possui um repertório de estrelas, diz Ethis (p. 83). Instrumento de base instituido pelo cinema americano desde 1910, a estrela ocupa um lugar central em muitas outras cinematografias nacionais. A estrela interessa particularmente à sociologia do cinema, dado que toca múltiplos aspectos sociais constitutivos do objecto cinematográfico.
A estrela transporta uma aura mágica, que dá a ilusão que ela chegou a uma posição determinada porque foi eleita. Deste modo, a estrela está, simultaneamente, longe do fã que a idolatra, devido ao seu estatuto, mas mais próximo deste do que qualquer outro actor. Podemos, assim, concluir que o modo de existência da estrela é um discurso estético e social, acrescenta Ethis, que nos encaminha para a compreensão do estatuto do fã. A mitologia das estrelas situa-se numa zona mista e confusa, entre crença e divertimento.
Emmanuel Ethis dirige o departamento de Ciências da Informação e da Comunicação da Universidade de Avignon
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