Coisas e Coisas
O RESSENTIMENTO EM MARC FERRO
Durante a licenciatura, há muitos anos atrás, eu aprendi a saber o valor de Marc Ferro, em especial devido à revista Les Annales (Économies, Sociétés, Civilisations), de que foi co-director. Os meus professores seguiam muito a escola francesa e ensinavam Marc Ferro e Fernand Braudel, por exemplo.
Nascido em 1924, Marc Ferro interessou-se desde cedo pela História. Ensinou na École Polytechnique, foi director de estudos no IMSECO (Institut du Monde Soviétique et de l’Europe Central e Oriental) e esteve na Argélia, onde apoiou os movimentos de solidariedade para com aquele país quando ainda estava sob a colonização francesa. Eis duas áreas de grande reflexão do historiador: a revolução russa e o colonialismo. A que juntaria a paixão pelo cinema.
Além de historiador, Ferro é um grande contador de histórias. Hoje, no final de uma tarde muito quente, prendeu a audiência da Gulbenkian durante mais de uma hora, falando de improviso (consultou notas de um papel somente duas vezes, e já quase no final, para se certificar que esgotara o repertório). O tema: ressentimento na história. O qual foi exposto com muito brilhantismo e graça, despertando frequentes risos entre os ouvintes quando usava metáforas ou trocadilhos.
Para ele, há dois tipos de ressentimento: o do indivíduo e o da sociedade. Misturando-se os dois, podem surgir movimentos poderosos. O ressentimento é uma memória que atravessa gerações e não possui ideologia. Por um lado, é uma cólera, uma humilhação - a do que perde. Por outro lado, pode representar uma renovação, uma recuperação de valores - a exaltação que conduz a uma guerra. Mas também existe uma representação benigna.
Um dos ressentimentos históricos a que concedeu a primazia foi o do islamismo. E, se começou por recordar os atentados de Madrid em 2004, lembrou também a relação difícil entre Espanha e Marrocos, que dura há séculos, ou mais especialmente desde 1492, quando os árabes (mouros) foram expulsos de Espanha. Os islamitas radicais dizem que islamizar é modernizar. Não é o movimento da modernidade a entrar no islão, mas este a penetrar no mundo contemporâneo. Para alguns islamistas, o passado é mais presente do que o próprio presente. Daí referir o mundo esquizofrénico da cultura do islão, metido entre duas vontades: o ressentimento (contra os americanos, contra os espanhóis, por exemplo) e a sharia. Além da posição que tem a ver com o passado: não podem ser escravos daqueles que foram seus escravos (na Península Ibérica).
Outro ressentimento a que deu primazia foi o que originou a União Soviética. O irmão de Lenine fora assassinado, o que levou este a assumir uma vontade transformada em doutrina. E Marc Ferro estabeleceu longas homologias com a França da revolução de 1789 e as posições de Robespierre e Marat.
O orador falaria de duas fases de uma revolução, a primeira das quais a luta contra a humilhação, onde se despertam valores, esperança, solidariedade. É a luta dos humilhados individuais (por causa dos impostos, da terra agrícola que não se tem, das diferenças de riqueza). A que se sucede a segunda fase, quando os indivíduos concluem que a esperança depositada nos momentos iniciais não é concretizável. Nasce uma terrível cólera, com uma violência de massa. A dimensão é, por conseguinte, ampliada e os resultados aumentados, com destruição de valores e pessoas de outras classes sociais.
Frequentemente, os ressentimentos estão escondidos, larvam no interior das sociedades. Diria eu, tratam-se de demónios adormecidos, células adormecidas como se definiram os grupos de islamistas que perpetraram atentados com bombas nos anos mais recentes. Quase a concluir, Ferro enunciou outros agentes conservadores dos ressentimentos: os historiadores e a escola, que perpetuam determinados sentimentos.
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