O que é qualidade literária? - Parte VII
Coisas e Coisas

O que é qualidade literária? - Parte VII


Leitor e Crítica

Os textos anteriores serviram para mostrar como existe uma série de variáveis que influem no modo como um texto é percebido, contribuindo para fazer o leitor se interessar ou não por ele. A análise dessas características nos leva à conclusão de que uma mera avaliação estética não serve como parâmetro para dizer se uma obra é boa ou não, afinal a falta de familiaridade com algum desses fatores poderá fazer com que o leitor não perceba o que está abaixo da superfície. Por isso tantos leitores iniciam a leitura de um clássico com aquela idéia de que “bem, se tantas pessoas dizem que essa obra é boa, não há como não derivar prazer em sua leitura” e se decepcionam. Por faltar ao leitor uma ou mais referências culturais que estão sendo exploradas na obra, a leitura tornou-se enfadonha ou incompreensível. A partir disso é que ocorrem deslocamentos entre o ponto de vista da crítica e o ponto de vista do leitor, o que ajuda a disseminar a idéia errônea de que um crítico literário somente dá valor àquilo que o leitor não gosta ou não compreende.

O deslocamento entre o ponto de vista da crítica e o ponto de vista do leitor pode ser visto nas reações comumente observadas à obra "Dom Casmurro", de Machado de Assis, obra que poderíamos chamar de um caso clássico de desenvolvimento de diferentes expectativas entre leitores e críticos. Freqüentemente o livro é adotado nas aulas de literatura por escolas do ensino médio e não é raro encontrar leitores que dizem odiar Machado de Assis por causa da leitura que fizeram da obra na escola. Mesmo assim, o livro está sempre presente nas listas de melhores obras da literatura brasileira. O que há de errado? Parte do problema está justamente na inabilidade do leitor em reconhecer elementos que compõem a obra. Em primeiro lugar, a grande maioria dos alunos de segundo grau não tem a experiência de leitura necessária para reconhecer as nuances de sentido presentes no texto que constroem ambigüidades ou não entendem conceitos literários básicos como personagem, temporalidade e espacialidade ficcionais. Assim, os leitores adolescentes acreditam que o narrador diz somente a verdade, mesmo sendo um advogado – um profissional que se caracteriza pela capacidade de persuasão, estando certo ou não – que passa dois terços do romance minando a confiança do leitor em Capitu e, na parte final, brevemente expõe suas 'provas', que se resume a pontos de vista de alguém que quer se convencer de que algo está errado. Imagine um juiz julgando um caso em que está diretamente envolvido. Obviamente, a sentença dada estaria comprometida e o julgamento seria invalidado. Esse é exatamente o caso de Bentinho ao apresentar seu julgamento ao leitor, um narrador não confiável. Ao mesmo tempo, se houve uma traição, poderia Bentinho narrar de outro modo sua história? Se essas questões estivessem claras durante a leitura, provavelmente o jovem leitor se concentraria justamente em perceber em que pontos específicos o discurso de Bentinho apresenta interrogações, de que modo ele é incerto, ou como Capitu é moldada segundo as intenções do narrador, enfim, de que modo a maneira como a obra foi escrita privilegia insinuações ao invés de afirmações, formando um romance de incertezas. Saber de antemão que essa é uma resposta impossível e que a grande qualidade do romance é justamente a inquietação causada pela impossibilidade de reconhecer evidências que um ponto de vista é totalmente correto, poderia direcionar a leitura para uma aproximação entre os jovens leitores e o ponto de vista crítico em relação a obra.


Portanto, se pode haver grande diferença entre o ponto de vista de um leitor comum e o ponto de vista de um crítico literário, por que valorizar a crítica (que afinal de contas também é uma opinião de leitor)? O que faz o ponto de vista crítico, um ponto de vista com mais credibilidade? O exame entre as diferenças entre recepção estética e recepção crítica procurará responder essas perguntas.



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