O outro lado
Coisas e Coisas

O outro lado


Passo a manhã toda em uma favela. Ouço moradores e líderes comunitários que acusam a administração pública da cidade de omissão e negligência. Não são exatamente essas as palavras usadas, mas é exatamente isso que eles querem me dizer. Visito os pontos mais drásticos da favela, conheço de perto as promessas que não foram cumpridas. “Político é tudo safado”, diz, revoltada, uma moradora.

Almoço numa padoca qualquer (para variar um pouco) e volto à redação no início da tarde. Preciso ouvir o “outro lado”. O outro lado em questão é um secretário do governo municipal, sujeito com pouca disposição em falar com a imprensa, ainda mais nesta situação. A pedido do assessor de imprensa, ligo diretamente para ele, mas sua secretária me diz que “ele não vai poder estar me atendendo” neste momento por conta de uma reunião.

- Duda, já falou com o secretário? Podemos fechar a matéria?, pergunta meu editor, no meio da tarde.

Não, não falei. Já liguei algumas vezes. E nada. O sujeito nunca “vai poder estar me atendendo” simplesmente porque não quer me atender. É a reunião que não acaba, depois a audiência com alguém importante ou são os despachos do dia.

- Não podemos colocar que “procurado pela reportagem, o secretário não foi encontrado até o fechamento desta edição”?, sugiro a meu chefe. Mas a resposta é um duro “não”.

É sempre mais fácil dizer que “fulano não foi encontrado até o fechamento desta edição”, mas não podemos. Temos, sim, de ouvir o outro lado! Estou irritado com o passar das horas e nada de conseguir ouvir o outro lado. Quem foi o filho-da-puta que inventou essa coisa de ouvir o outro lado? Se o cara não quer falar, azar dele. O desgaste me faz questionar até os princípios éticos do bom jornalismo.

Ele fica de retornar minhas ligações e aguardo, sem qualquer paciência. “Ele vai estar ligando para o senhor”, promete a secretária do secretário. Tomo copos e mais copos de café. Não tiro os olhos do telefone, que não toca. Lembro aquela mulher apaixonada, que espera com uma ansiedade sem fim o telefonema de seu amado no dia seguinte ao primeiro encontro. Será que ele gostou de mim? Do meu papo inteligente? Da minha escova marroquina? Será que vai querer me comer de novo?

O secretário não me ligou.

- Duda, fecha esta matéria sem o outro lado mesmo, porque já acabou o seu tempo, grita meu editor. Coloca aí que “procurado pela reportagem, o secretário não foi encontrado até o fechamento desta edição”.



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