Coisas e Coisas
O jornalismo segundo Eco
Umberto Eco é um bom contador de histórias. Ele tem muita experiência de escrita de narrativas, possui uma enorme cultura europeia (e norte-americana, quando escreveu sobre banda desenhada em
Apocalíticos e Integrados) e é sábio pela idade. Logo, um novo livro aguça o apetite do leitor em busca de uma história palpitante.
Número Zero não foge à regra. Primeiro, tem uma dimensão própria para se ler num serão ou numa viagem de comboio, por exemplo. Depois, há uma intriga policial, aqui com um regresso a acontecimentos passados, como ele produziu no livro
A Misteriosa Chama da Rainha Loana, por exemplo. Sob a forma de diário, Colonna, jornalista e escritor fantasma (
ghost-writer), escreve sobre um jornal chamado
Amanhã, de que apenas se editarão números zero. Além do dr. Colonna, têm importância para a história o diretor Simei, a solteira Maia Fresia e o investigador de coisas ligadas à teoria da conspiração, Romano Braggadocio. Colonna amparar-se-ia no ombro de Maia, Braggadocio vasculharia na História a morte do ditador Mussolini, o que ditaria o assassinato do jornalista, o fecho mais rápido do jornal e a fuga do diretor e de Colonna, que ia escrever um livro sobre a experiência do jornal de números zeros. Há uma personagem distante, apenas entrevista, a do comendador, o dono do jornal e com interesses económicos e financeiros em muitas áreas de negócio.
Um terceiro elemento a retirar do romance é a erudição do autor, aqui excessivamente aplicada. E, talvez, algum exagero na descrição da história de Mussolini e do presumível duplo deste, que teria morrido na praça pública, enquanto o verdadeiro ditador se refugiava na Argentina, como Braggadocio estava a investigar. Porém, por outro lado, o centrar muito da narrativa na história do fascismo italiano de um modo leve mas relevando a estupidez, a perversidade e o tenebroso do regime habilita leitores mais jovens a compreenderem o núcleo político desse regime desaparecido no final da II Guerra Mundial. Além de nos levar a pistas engenhosas de grupos extremistas como Gladio e Aginter Presse, este último com atividade verdadeira em Portugal e já romanceado por João Paulo Guerra, pelo menos.
O quarto elemento - e a razão principal que me leva a escrever sobre o romance de Eco - é o que ele conta ou analisa sobre a atividade jornalística: os temas, as relações com o mundo político, empresarial e económico, o que convém dizer ou não, as insinuações, a ausência de objetividade e, mais do que isso, de verdade em muitas notícias. Não sendo um livro de sociologia ou de história dos media, sem a organização dos textos de ciências sociais, mas um romance, onde o mais importante é o enredo, do livro retiram-se muitos conhecimentos, interessantes para quem quiser estudar o jornalismo. Reconheço que a imagem que daqui sai sobre os media está longe de ser otimista ou positiva, mas a sua leitura permite pensar (ou efabular) sobre jornais e meios de comunicação que conhecemos. A morte de caráter (indivíduos ou entidades), o tendencioso e o falso em muito do que se noticia, surgem no livro em toda a sua nudez.
Recupero Eco de um seu texto que li com muita atenção
Construir o Inimigo e Outros Escritos Ocasionais: "Ter um inimigo é importante, não apenas para definir a nossa identidade, mas também para arranjarmos um obstáculo em relação ao qual seja medido o nosso sistema de valores, e para mostrar, ao afrontá-lo, o nosso valor" (p. 12). E lembro-me dos tão brilhantes quanto impenetráveis livros de semiótica do autor: a
Obra Aberta continua uma das minhas grandes referências literárias de sempre. E
O Nome da Rosa um romance de uma enorme imaginação e que passou para o cinema.
loading...
-
Xeque
Quem tem costume de fazer palavras cruzadas, sabe que algo extremamente decepcionante é apanhar um desafio qualquer e depois de alguns minutos perceber que o desafio foi facilmente vencido. Não havendo qualquer esforço mental, o passatempo perde totalmente...
-
Estilo E Literatura
Estilo e literatura podem conviver bem. Não sei ao certo qual é o limite ideal entre a importância que se dá ao estilo e a importância que se dá a história. Pessoalmente, detesto quando o estilo é que compõe a obra. Sou da tradição que diz...
-
Sobre A Aginter Presse
João Paulo Guerra cobriu, para Rádio Clube Português, o primeiro de maio de 1964. Na praça dos Restauradores (Lisboa), a polícia carregou nos manifestantes e um esquadrão da Legião Portuguesa (Centuriões) apareceu e disparou, matando um dos manifestantes,...
-
Parem As Máquinas
São 23 histórias deliciosas do jornalismo, desde o final da monarquia até ao pós-1974. Quase todos os jornalistas referidos no livro ficaram para a história e para a cultura nacional, como Ferreira de Castro, Félix Correia, Urbano Carrasco, Urbano...
-
O Jornalismo A Partir Das Memórias Do Jornalista
Manuel Dias entrou como jornalista em 1953 no Diário do Norte (Porto). Depois, em 1967, entrou para o Comércio do Porto, e em 1974 para o Jornal de Notícias. Embora o texto que aqui refiro não tenha um cunho cronológico e sociológico, retenho elementos...
Coisas e Coisas