"Fundador" é destes livros que quando se inicia a leitura, não há como parar. Todos os elementos da boa literatura estão contidos na obra e são trabalhados de uma forma surpreendente. O livro fala dos sonhos dos homens, colocando como pano de fundo a conquista da América pelos europeus. Para falar de sonhos e conquistas, Nélida Piñon utiliza elementos fantásticos de linguagem, transformando fatos em narrativas heróicas, contos de fadas adultos. Esta ‘transformação’ é que faz com que trechos em prosa, se tornem quase poesia, tornando a leitura em voz alta quase uma obrigatoriedade. Veja, lendo o trecho abaixo, se isto não é verdade:
"O que Fundador lhes propunha, apreciariam se ficassem. Uma construção! Reino no céu, ou sua imitação, na própria terra. E não queria cidade apenas para dominar. Exclamava, na solidão do seu quarto: raros homens destinam-se a uma cidade, sem que consultem para isso outras criaturas: a fundação de uma cidade é anterior à religião, depende de fé que religião não assume, e ainda de homens, animais, e a libertação da mata."
Além da linguagem, a forma como a história é contada representa outro ponto fundamental da obra. Várias narrativas são mescladas, diversas períodos são misturados e um grande número de personagens se alternam durante o romance. O tempo anda em círculos e ora estamos no passado visitando personagens que lutam pela conquista de uma terra prometida por mapas e sonhos, ora estamos no presente encarando a revolta de personagens frente às desigualdades sociais existentes, que sonham por um mundo mais justo. Com o avançar das páginas, vamos desvendando que caminhos ligam os personagens do passado com os do presente, tal qual o mapa que indica a rota até a terra sonhada.
Por último, os personagens são marcantes, cheios de vida, com uma força espantosa. Fundador, o personagem sem nome que quer realizar seu sonho de construir uma cidade, sob certos aspectos se parece com a personagem Ana Terra, de Erico Verissimo. Teodorico de Antioquia, é um personagem misterioso e dono da incrível capacidade de desenhar mapas de terras muitas vezes inexploradas, e a comparação que faço é com o personagem Melquíades, da obra "Cem Anos de Solidão" de Gabriel Garcia Márquez. Mas, a bela amizade de Ptolomeu e Joe é uma das mais diferentes e comoventes da literatura. De um lado um velho paciente, de outro um jovem impetuoso e hostil a qualquer demonstração visível de carinho. As páginas 120 até 122, intercalam um diálogo duro entre os dois, mas com pensamentos ternos, ligando-os. Impossível não distinguir a beleza literária que Nélida consegue extrair de personalidades tão distintas e ao mesmo tempo tão próximas.
"Fundador" é apenas uma das grandes obras da escritora, que possui em seu currículo ainda outras obras que chamam atenção de críticos e leitores, como "Guia Mapa de Gabriel Arcanjo" e "A Casa da Paixão". Por tudo isso, votaria em Nélida Piñon como a brasileira mais próxima de ganhar o Nobel de Literatura, aparentemente a última grande homenagem a esta escritora de enorme talento. Não premiá-la com o Nobel de Literatura será uma surpresa (para não usar a palavra 'injustiça'). Quem ainda não conhece seu trabalho, recomendo começar a conhecê-lo o quanto antes. Possivelmente não se arrependerá e ainda passará por aqui para me agradecer pela dica.