Coisas e Coisas
COLUMBANO BORDALO PINHEIRO
A pintura de Columbano nunca me atraiu particularmente. Aliás, só recentemente aprendi a olhar a pintura naturalista da segunda metade do século XIX. O meu coração está com o expressionismo e as correntes subsequentes até 1970, sem esquecer o prévio cubismo e os trabalhos de Amadeo Souza-Cardoso. A minha alegria está quando visito a exposição permanente do Museu do Chiado (pintura do século XX) ou as três últimas salas de pintura do Museu Soares dos Reis (Porto) (igualmente pintura do século XX).
Nem as cores de Columbano despertam a minha atenção. São obras escuras, de nem sempre fácil apreensão. Os retratos, alinhados num dos lados da sala, são tristes, representam apenas homens (personalidades célebres na época, como Antero de Quental, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro, Fialho de Almeida, Henrique Lopes de Mendonça), com rostos quase iguais (barbas, olhares mortiços, escassa beleza masculina). De mulheres, vêem-se as da sua irmão mais velha e pouco mais.
Reconheço que estou a exagerar e a desprezar a obra de Columbano, sem qualquer justificação. Primeiro, o retrato de Matilde Adelaide Pinto da Silva mostra-nos uma grande finura de traços, uma compreensão dos sentimentos da retratada. Depois, basta olhar para O sarau (1880) para contrariar a opinião expressa nas linhas anteriores. Ao centro-esquerda da tela, está um piano com uma jovem a interpretar. De pé, um homem mais velho canta, ou declama, ou dirige musicalmente uma parte da assistência. Em cada um dos cantos da cena, mulheres e homens, escutam. Em primeiro plano, parece haver um gato; em fundo, observam-se algumas decorações (relógio, vaso, candeeiro), que veríamos também nas fotografias de finais do século.
É uma cena de serão familiar. Observam-se duas gerações distintas, sendo o sarau uma actividade cultural e de educação e integração social. Há um rigor nas roupas: o senhor à direita usa um fraque, o menino ao centro veste elegantemente uns calções deixando sobressair umas meias vermelhas. O longo cabelo louro e a posição das pernas denuncia a sua chegada junto do grupo dos cantores. As senhoras, de cabelo puxado atrás, seguem o movimento do rapazinho. À esquerda, estão os intelectuais: talvez pintores, artistas, poetas, filósofos.
As cores representadas são quentes, em oposição a outros quadros do pintor. E esta obra parece anunciar uma tira de banda desenhada: poder-se-iam contar várias histórias olhando o modo como os grupos se encaixam.
Reformulo, assim, a opinião incorrecta acima escrita neste postal. A sua obra, que na exposição percorre os anos de 1874 a 1900, possui a dimensão apropriada para caber numa mostra temporária no Museu do Chiado, e parte de um importante espólio daquele museu. Depois, remete para uma época precisa, de grandes mudanças sociais, políticas e culturais (o ultimato dos anos 1880 é uma marca na história nacional e os retratos representam alguns dos principais dirigentes políticos e intelectuais que tomaram parte nas manifestações dessa época). Em terceiro lugar, o percurso de Columbano passa por trazer novidades para o panorama português, após passagens pela cultura e arte de Paris, então a capital do mundo: apesar de naturalista, há um ar fresco nos temas e no preenchimento dos espaços da tela.
Noto particularmente as cenas da burguesia, de que o quadro descrito acima é o expoente. A arte e a música eram expressões de riqueza intelectual, quando a burguesia controlava desde há muito o poder económico e político. Mas o quadro reflecte ainda o lado intimista de muita da produção de Columbano: as histórias individuais, aqui dentro da família, são resultado de interacções estabelecidas entre aqueles e esta. A natureza pintada não era tanto a natureza de lá fora, mas a vivida no interior do lar, do conforto e da alegria dos pequenos gestos em casa.
Exposição de Columbano Bordalo Pinheiro patente no Museu do Chiado, organizada por Pedro Lapa, director do próprio museu.
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