Coisas e Coisas
AINDA OS MEDIA DOS PRODUTORES AMADORES
Elizabet Shove, Matthew Watson, Martin Hand e Jack Ingram publicaram o ano passado um livro intitulado The design of everyday life. De que trata o livro? Do papel das actividades domésticas nomeadas frequentemente de bricolagem: pintar as paredes de uma sala, arranjar a fechadura de uma porta, mudar uma simples lâmpada ou reparar um pequeno electrodoméstico, associado à sociedade de consumo e, por via disso, à sociologia do consumo ou estudos de consumo e cultura.
Mas, obviamente, e daí o meu interesse pelo livro, este aborda um tema que eu comecei a escrever nos dias anteriores: os media dos produtores amadores (ou domésticos). Os quatro autores estudam as máquinas de imagem digital e o impacto que elas têm no comportamento e conhecimentos dos amadores. São os efeitos materiais e tangíveis no quotidiano que eles trazem para reflexão. Shove e os seus colegas perguntam: como é que conceptualizamos os materiais da cultura material e como olhamos os objectos e as práticas que envolvem essa cultura material? Esta pode ser perspectivada em termos de género, idade, identidade e poder. A cultura material associa-se ao DIY (do it yourself), que poderíamos fixar em FVM (faça você mesmo).
Projectos DIY, competências adquiridas, o plástico como um dos materiais chave da cultura material, teorias e práticas do design de produto, processos e práticas - são alguns dos pontos essenciais do livro. E, igualmente, a reprodução de fotografias digitais. Os quatro autores partem das seguintes ideias: há coexistência de formas profissionais e amadoras, com ambas a integrarem elementos diferentes e complexos, a exigirem envolvimento e competência e a seguirem a ideia de projecto.
Depois, Shove e os colegas entendem a fotografia como um modo de identificação da vida individual, pois a fotografia reflecte os gostos e as opções pessoais. Ser fotógrafo significa uma prática, uma dinâmica, cujo reverso de desinteresse é dado pela ocupação do tempo noutras actividades. Isto é, a prática fotográfica pode aparecer e desenvolver-se, mas igualmente perder importância.
Fazendo uma rápida viagem à história da fotografia, ela surge nos anos de 1830, em especial com a introdução do daguerreotipo em 1837. Apesar da contínua evolução, o custo do equipamento e o tempo a ela dedicada tornavam a fotografia uma paixão de muito pouca gente. Em 1883, George Eastman começou a produzir rolos de filme, simplificando o processo de fazer fotografias. A Kodak Brownie surgia em 1901 - a primeira máquina para o mercado de massa. A mensagem publicitária era: "carregue no botão que nós fazemos o resto". Por volta dos anos de 1960, a máquina fotográfica alcançava o estatuto de bem presente em qualquer momento da vida pessoal. E os sociólogos passaram a prestar atenção a esta actividade: Bourdieu escreveu sobre os profissionais e os amadores, Sontag sobre a imagem visual, a memória e o significado dos álbuns de família. No início dos anos de 1970, começa a desenvolver-se a tecnologia digital, mas o mercado de consumo apenas arrancou na década de 1990. Mais perto de nós, em 2004, máquinas mais baratas e de boa qualidade começam a ser vendidas, incluindo as que estão alojadas nos telemóveis.
O capítulo do livro de Elizabet Shove, Matthew Watson, Martin Hand e Jack Ingram, que venho seguindo, dá particular relevo ao processo tecnológico, aquilo a que chamam mudança para o digital, dadas as implicações estéticas e sociais operadas. E referenciam histórias de vida, como o profissional que achou ser uma traição abandonar o equipamento analógico, que fornecia melhor qualidade de imagem; contudo, após a aquisição de equipamento digital, verificou a muito maior facilidade de controlar movimentos e as enormes possibilidades de manipular as imagens através do software instalado no seu computador. O capítulo também conta a história de uma adolescente, cuja permissão de uso da máquina analógica era intermitente, dado o custo da máquina e dos filmes e revelação, passando a usufruir de total liberdade e abundância de imagens quando adquiriu uma máquina digital.
A fácil manipulação de uma máquina digital, a possibilidade de fazer centenas de imagens sem custo acrescentado e o envio e troca dessas imagens através da internet, a que se junta o tempo disponível de muitos consumidores, nomeadamente jovens, faz destes especialistas - que estudam entradas de luz, velocidades de disparo, multiplicidade de imagens sobre o mesmo objecto para melhor escolha. Há uma crescente expertise que seria mais lenta com os equipamentos analógicos, dados os factores custo e lentidão de obter os resultados (processo de revelação).
Mas a fotografia digital traz outras mudanças na rotina de um fotógrafo. Dantes, as fotografias eram arquivadas num sentido, tal como a data e o motivo. Agora, a memória dos cartões é despejada no computador e, embora fique a data, a quantidade de imagens arquivadas dificulta a selecção e a arrumação.
Os autores identificam outra alteração: a máquina digital tem um muito maior uso que a analógica, mas esta ainda está associada ao filme, à estética. Por seu lado, a imagem tirada num telemóvel é do domínio do fugaz e do instantâneo. Se quisermos, esta última e do momento de felicidade partilhada ou do momento de acontecimento inédito ou dificilmente repetido, e que a portabilidade do telemóvel permite guardar, sem preocupações estéticas.
Finalmente, termos como pro-am (profissional-amador) ou pro-con (profissional-consumidor) entram no jargão quotidiano. O interesse nisto é verificar que os media - a fotografia, neste caso - se usam simultaneamente por profissionais e pelos outros, os amadores ou consumidores. Cada consumidor pode ser produtor de media, sem perder o estatuto de amador mesmo que especialista.Leitura: Elizabet Shove, Matthew Watson, Martin Hand e Jack Ingram (2007). The design of everyday life. Berg: Oxford e Nova Iorque, pp. 70-92
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