Coisas e Coisas
A IMPORTÂNCIA DA ESCRITA
Um livro cuja leitura me entusiasma de cada vez que pego nele é A musa aprende a escrever, de Eric A. Havelock (1988/1996). Tema: a passagem da poesia à palavra escrita na Grécia e na sua literatura.
Se McLuhan chamou a atenção para os efeitos psicológicos e intelectuais da imprensa, Havelock haveria de recuar até à cultura grega, 700 anos a. C.Este autor concluira pela lentidão do processo de alfabetização. Até então, o coro (da tragédia grega) desempenhara um papel fundamental na conservação da tradição, oralidade também associada à dança e à melodia. Resumindo: nas sociedades orais, a responsabilidade do discurso residia na associação da poesia, da música e da dança. A poesia era originalmente o instrumento operativo de armazenamento de informação cultural para reutilização ou o instrumento para o estabelecimento de uma tradição cultural (Havelock, 1996: 90).
Essa necessidade de manter a memória exigia um conteúdo económico da mesma (Havelock, 1996: 128), acrescentando-se novo material com cuidado e apenas quando se perdia informação anterior. Acrescento eu: a memória oral era o garante da preservação e da tradição mas impedia a renovação e a mudança.
Continua Havelock: na oralidade primária, as relações entre seres humanos regulavam-se pela acústica (complementada pela percepção visual do comportamento corporal). A comunicação primária inclui o sorriso, o franzir das sobrancelhas, o gesto (Havelock, 1996: 84) - códigos visuais puros.
Na história da palavra grega escrita, o texto mais antigo é, provavelmente, de Hesíodo, escreve Havelock (1996: 97). As letras, como artefactos, objectivam a memória, tornam-na visível. O facto de serem uma transferência que ainda retém a oralidade materna, e não uma criação nova, é reconhecida pela expressão mãe-musa, grammata, certamente lembrança da genealogia de Hesíodo.
No século VI a. C., existiam funcionários específicos, os memorizadores, a que corresponderia um serviço executado para uma sociedade não letrada, onde se preservavam oralmente as regras e os precedentes e a cronologia do passado (Havelock, 1996: 102), desígnio servido pela memorização de uma sequência fixa de nomes associada a acontecimentos e acrescida de uma contagem de anos. E, continua Havelock, todas as informações apontam não para a pronta aceitação do alfabeto mas para uma resistência. A leitura, juntamente com a escrita, não seria celebrada no drama grego antes do último terço do século V, no Hipólito, de Eurípides (Havelock, 1996: 106). Os primeiros textos da chamada grande literatura, em pergaminho ou papiro, seriam encarados pelos gregos da época como continuação da prática oral.
Depois, à medida que se efectivava a mudança para a literacia, produziam-se alterações na configuração da sociedade humana (Havelock, 1996: 119). Oferecia-se um acto de visão em vez de um acto de audição, como meio de comunicação e de armazenar a comunicação. O armazém da acumulação, já não material acústico mas visível, torna-se passível de alargamento.
Leitura: Eric A. Havelock (1988/1996). A musa aprende a escrever. Lisboa: Gradiva
loading...
-
Fronteira Em Mcluhan (iii)
[continuação da mensagem de 8 de Junho de 2010] Relembra McLuhan que Harold Innis desenvolveu uma aguda consciência da tradição oral no mundo antigo, isto como resultado dos seus estudos sobre o mundo moderno [Stephanie McLuhan e David Staines (org.)...
-
AINDA SOBRE JORNALISMO DIGITAL E OUTRAS MATÉRIAS (II) Em 9 de Junho último, sob a influência da importante discussão havida em Braga em torno do jornalismo digital, escrevi um post, remetendo a sua continuação para depois. Eis que o faço agora...
-
T. S. ELIOT E A CULTURA T. S. Eliot (1888-1965), poeta, crítico e editor, premiado com o Nobel da literatura em 1948, estudou em Harvard, na Sorbonne (Paris) e em Oxford. Nasceu nos Estados Unidos (Missouri), mas chegou a Inglaterra em 1914, onde trabalhou...
-
NOVAS TECNOLOGIAS E CONSUMO DOMÉSTICO (I)
No discurso dominante, usa-se a expressão novas tecnologias mas sem cuidar muito bem do que se trata. Mas o que é isto?
Tem-se atribuido a designação novas tecnologias aos computadores e às redes de...
-
A TELEDEPENDÊNCIA SEGUNDO SARTORI
Para Giovani Sartori (2000), a televisão – a que chama vídeo, ver de longe – está a transformar o homo sapiens, produto da cultura escrita, em homo videns, com a imagem a destronar a palavra.
Sartori ilustra...
Coisas e Coisas