Coisas e Coisas
A CIDADE DOS QUE PARTEM
O espectáculo levado à cena pelo Teatro da Palmilha Dentada,
A Cidade dos que Partem, começou no dia 30 de Janeiro e conclui no dia 28 de Fevereiro. Pelo que me apercebi está a ser um grande sucesso, nomeadamente o público que enche a sala do Teatro Carlos Alberto (TeCA), no Porto, numa boa articulação entre gerações mais novas e menos novas.
Chegadas e partidas são um dos fios condutores da peça. Esta começa com os actores a actuarem no centro da sala, em que um dos elementos do grupo vai deixar a aldeia em busca de um melhor futuro na cidade. A despedida é dolorosa, a chegada complicada, mas eis que Carlos Anunciação está no Porto, a cidade almejada, onde vai trabalhar na oficina de automóveis do tio Zeferino. Cruza-se com a guia turística, o presidente da Câmara e a jornalista que não pode fazer perguntas para além do estipulado previamente, o empresário que quer fazer a "Cidade da Felicidade" e o músico. Ele aprende a profissão de mecânico e à noite toca o seu saxofone numa banda de cave.
Na peça cruzam-se influências do teatro musical, do musical americano (por exemplo, Gene Kelly em
Serenata à Chuva, 1952), da pop britânica, num cenário virtual bem adaptado ao cenário real de três níveis (que representam ruas, espaços, distâncias). Recordo o diálogo entre dois prédios, em que um se desfaz perante o olhar incrédulo de Carlos, o mecânico músico, já integrado em cenário real. Não é um teatro sério mas leve, parece recuperar tradições de teatro popular, de bairro e de proximidade. Por vezes, os actores cantam em playback, numa mistura de vida e fantasia.
A Cidade dos que Partem é um musical que não é um musical, como dizem os autores, mas em que a música representa uma posição central - a peça é uma espécie de musical sobre o Porto. Os oito autores de música original indiciam a importância dada na revelação de valores dos que se mantêm no Porto. O contraluz ou silhueta em que aparece a banda a tocar produz um forte efeito visual, onde se misturam significados de
underground suburbano mas também lembrando o festival da canção, pela posição da cantoras.
É patente o esforço de modernidade no guarda-roupa, das cenas iniciais de tradição rural aos turistas em forma de lego que seguem a guia, caricatura do turismo de massa dos nossos dias, ou do vestuário com recurso ao nariz de carnaval e chapéu, gabardina e botas de borracha, um estereótipo da homogeneidade da população urbana. A oposição entre aldeia e cidade é visível mas ambivalente, entre as raízes rurais do guarda-roupa da cena inicial e da música que a acompanha e a promessa do herói se corresponder com a namorada não por carta mas pelo Messenger.
A peça é uma crítica: os actores riem-se deles mesmos, mas igualmente do presidente da Câmara do Porto, dos governantes e dos governados. Daí, as referências constantes ao nevoeiro que paira na cidade, às tripas como prato do Porto (que deram a carne aos lisboetas - leitura do desequilíbrio na relação entre as cidades), aos princípios. O riso também se pode ler como desencanto. A cidade vê chegar gente mas também vê partir gente, em busca de melhores condições de trabalho. A saída dos músicos para a capital é um sinal dessa transferência.
O Teatro da Palmilha Dentada, que um dia critiquei duramente aqui no blogue e noutro dia comparei-os com A Voz dos Ridículos, começou a actividade em 2001 e existe legalmente desde Agosto de 2003. Com sede no Porto, tem espectáculos como
Os Piratas do Fio d'Água (2001),
As Noites Nocturnas de um Par de Dois (2002/2003),
Palmilha News (2003/2004),
O Manifesto de Amélia (2006),
Bucket (2008). Ricardo Alves, Rodrigo Santos e Ivo Bastos são o núcleo fundador.
Diz Ricardo Alves: "Interessa-nos muito mais inquietar e provocar quem está adormecido do que estar a desmontar ou a demolir os esquemas de alguns agentes políticos, que por si só não nos incomodam nada. A apatia incomoda-nos muito mais. Os níveis de cidadania em Portugal são vergonhosos. Nada nos mobiliza, estamos completamente apáticos, não queremos saber de nada. E olhando para a cidade [do Porto] o que é que vemos? Está tudo à espera que alguém faça alguma coisa".
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