Coisas e Coisas
14) TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO
A presente obra é de estudo e não de mera leitura. Trata-se de um trabalho filosófico-jurídico sintetizado pelo doutrinador italiano Norberto Bobbio. Na nossa avaliação o ponto alto da obra se verifica no item 3 do Capítulo 3 que trata das antinomias, ou seja, das normas incompatíveis entre si.
Para esclarecer este ponto o Autor relaciona quatro situações de qualificação normativa, a saber: a norma que obriga; a norma que proíbe; a norma que permite tudo e a norma que permite somente uma conduta específica. Veja o quadro abaixo:
A norma que obriga algo tem como norma absolutamente contrária a norma que proíbe a mesma coisa, sendo portanto incompatíveis no sistema jurídico. Nesse aspecto ressalta que em situações como esta, o operador do direito jamais se posicionará favoravelmente a ambas normas, considerando sempre que uma seja verdadeira e outra falsa, ou mesmo ambas falsas.
A representação gráfica desse raciocínio é apresentada no quadro abaixo, onde “O” representa a norma que obriga, e “O não” representa a norma que proíbe.
Ex: “Lei A” diz que o “comportamento X” é obrigatório, mas a “Lei B” diz que esse comportamento é proibido. Ou ambas normas são totalmente falsas ou uma só é verdadeira. Imagine-se se o “comportamento X” seja dirigir veículo automotor. Não é possível admitir que tal comportamento seja tido como absolutamente obrigatório e nem que seja absolutamente proibido. Nessa situação, o operador do direito estaria diante a duas normas fundadas em premissas falsas.
Por outro lado, se o “comportamento X” for votar nas eleições dos 18 aos 70 anos, uma será considerada verdadeira a outra falsa. Utilizamos esse exemplo porque tal situação no Brasil é obrigatória e uma norma que proibisse votar seria norma falsa.
No segundo quadro a representação consiste entre a norma que obriga e a norma que permite apenas determinada conduta dentre o universo da conduta obrigatória, sendo então contraditórias e não contrárias. A relação entre ambas é de subordinação da norma mais abrangente (“O”) de contexto obrigatório, sobre a norma menos abrangente (“não O”) de contexto permitido negativo.
Nesse aspecto, tal como na situação anterior, operador de direito deverá se posicionar favoravelmente ou contrariamente a umas das normas conforme o caso concreto apresentado, porém, diferente da situação antinômica acima, sempre uma será verdadeira e outra falsa. Nunca ambas verdadeiras ou ambas falsas.Ex: “Lei A” diz que o “comportamento X” é obrigatório, mas a “Lei B” diz que um determinado comportamento (contido na mesma natureza do “comportamento X”) é permitido. Ou se acata a Lei A e despreza a Lei B, ou o inverso.
Imagine-se se o “comportamento X” seja votar nas eleições dos 18 aos 70 anos e a “Lei B” permite o voto dos jovens entre 16 e 18 anos e idosos acima de 70 anos. Não é possível admitir que alguém na faixa etária de 18 a 70 anos invoque a Lei B, como jovens e idosos na condição de não obrigados, invoquem a Lei A. Daí serem contraditórias e não contrárias.
Da mesma forma, contraditórias e subalternas são as normas que proíbem determinada conduta (“O não”) e a que permite uma conduta menos abrangente, mas que esteja contida na conduta proibida (“não O não”), também chamada de “permitido positivo”.
Conforme demonstrado no terceiro quadro, tal como no exemplo anterior, sempre uma norma será verdadeira e outra falsa. Nunca ambas verdadeiras ou ambas falsas.Um exemplo clássico dessa antinomia está a proibição estabelecida no artigo 28, inciso III da Lei 8906/94 e a exceção permissiva no §2º do mesmo artigo, senão vejamos:
Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes atividades:I - ...
II - ...
III - ocupantes de cargos ou funções de direção em Órgãos da Administração Pública direta ou indireta, em suas fundações e em suas empresas controladas ou concessionárias de serviço público;
IV - ...
V - ...
VI - ...
VII - ...
VIII - ...
§ 1º A incompatibilidade permanece mesmo que o ocupante do cargo ou função deixe de exercê-lo temporariamente.
§ 2º Não se incluem nas hipóteses do inciso III os que não detenham poder de decisão relevante sobre interesses de terceiro, a juízo do conselho competente da OAB, bem como a administração acadêmica diretamente relacionada ao magistério jurídico.
Veja-se que se não houvesse o parágrafo segundo, qualquer pessoa que ocupasse qualquer cargo ou função de direção na administração pública estaria impedido de advogar. O parágrafo segundo ameniza a prescrição da norma, haja vista que na vida prática, algumas funções não detém poder de decisão relevante sobre interesse de terceiros, como é o caso de um diretor de escola pública, só para ficar nesse exemplo.
Por óbvio o legislador quis atingir o Diretor de uma importante estatal, os Secretários e Ministros de Estado, etc., cuja atuação profissional lhe dá inquestionável prestígio, bem diferente de um simples diretor de escola pública.
Caso o legislador não tivesse previsto a exceção na regra, inibiria milhares de bons diretores de escola, recusar a missão muitas vezes delegadas pelos alunos, para não sofrer sérios prejuízos na sua vida profissional.
A seguir, temos a quarta situação em que quadro representa a antinomia entre o Obrigatório (“O”) e o permitido positivo (“não O não”).
Se uma ação é obrigatória, é necessariamente também permitida, devendo então essa segunda situação ter aspecto de subalternidade, uma vez que não é possível afirmar o contrário, ou seja, que por ser permitida àquela respectiva ação, a mesa seja também obrigatória.Sendo assim, a norma que obriga uma determinada ação, tem relação de superimplicaçao sobre a norma que permite essa mesa ação. Por outro lado, em caminho inverso, a norma que permite determinada ação tem relação de subimplicação sobre a norma que obriga.
Nesse sentido, existe uma relação cuja implicação é de que a norma que obriga deduz a verdade da norma que permite e não vice-versa, ou seja, a norma que permite pode ter relação de verdade com a norma que obriga como também de falsidade.
Exemplo: Lei A determina obrigatoriedade de pessoas do sexo masculino servir as forças armadas. A Lei B permite que dentre os obrigados, se de preferência a quem manifeste interesse em servir as forças armadas, de forma que, mesmo tendo uma norma obrigando, existe um voluntarismo manifesto do obrigado. Como foi dito, a norma que obriga o serviço militar, tem relação de superimplicaçao sobre a norma que permite a dispensa a quem não manifeste interesse.
Por outro lado, caso ninguém manifestar interesse em servir de forma “voluntária”, a Lei B não exercerá influência sobre a Lei A, prevalecendo a regra da obrigatoriedade, daí ter relação de subimplicação, cujo suposto direito de dispensa que alguém venha reclamar será conceituado como premissa falsa.
A quinta relação antinômica exposta por Norberto Bobbio diz respeito entre uma norma que permite positivamente (“não O não”) e outra que obriga (“O”).
O melhor exemplo desse tipo de relação antinômica é a lei que permite acadêmicos do último ano do curso de direito a prestar Exame de Ordem antes da conclusão do curso. Na sequencia, uma vez aprovado, para realizar a inscrição, a prova de conclusão é obrigatória.
Da mesma forma descrita na quarta relação antinômica, a norma que obriga uma determinada ação, tem relação de superimplicaçao sobre a norma que permite essa mesa ação. Por outro lado, em caminho inverso, a norma que permite determinada ação tem relação de subimplicação sobre a norma que obriga.A sexta e última relação antinômica está entre a norma que permite de forma positiva ("não O não") e a norma que permite de forma negativa ("não O").Como dito no exemplo anterior, a norma permissiva positivada tem natureza objetiva e fechada, enquanto a que permite de formas negativa tem natureza subjetiva e aberta. A norma permissiva positiva é taxativa, enquanto a norma permissiva negativa é por exclusão.
Ao contrário do primeiro exemplo de normas contrárias (Obrigatória x Proibida), em que ambas normas podem serem falsas, mas não podem ser ambas verdadeiras, neste exemplo são consideradas subcontrárias, donde ambas podem ser verdadeiras, mas não é possível ser ambas falsas.
Para trazermos esse último conceito à inteligência de um exemplo concreto, o que achamos mais adequado foi a desoneração criminal sobre uso de drogas para consumo próprio, nos termos do artigo 28 da Lei 11.343/2006, senão vejamos:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1oÀs mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2oPara determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3oAs penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4oEm caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5oA prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6oPara garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
§ 7oO juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.
Trata-se de uma permissão positiva sobre consumo das mesmas drogas que são proibidas no artigo 33 da mesma Lei.
Vale dizer que é permitido consumir todas as drogas que não estão na portaria governamental (permissiva negativa) e as que estão na portaria governamental, desde que em pequenas quantidades para consumo próprio (permissiva positiva).
Veja que a permissividade negativa é real e inconteste enquanto a permissividade positiva é circunstancial e dependente de avaliação subjetiva (ver §2º do art. 28).
Como dissemos, admite-se que ambas sejam verdadeiras ou somente uma verdadeira e outra falsa. Jamais admite-se que ambas sejam falsas.
Passaremos agora a abordar a obra sobre um contexto geral.
Norberto Bobbio pertence a uma corrente jusfilosófica que se costuma chamar de “escola analítica” ou “positivismo analítico”. Desde a década de 1950, seus trabalhos, marcam um nítido programa de reformulação dos estudos de Direito, que então se limitavam a uma polêmica tediosa e infecunda entre o chamado jusnaturalismo e positivismo.
Norberto Bobbio foi professor das Universidades italianas de Siena e Pádua e catedrático da Universidade de Turim. Nessa condição foi um dos primeiros doutrinadores a voltar-se para a metodologia da ciência do Direito, segundo uma análise lingüística.
A marca de sua obra é a finura da análise, rigor terminológico, disciplina de pensamento e um formidável acúmulo de informação.
Sobre isso Tulio Ascarelli (jurista italiano) disse: “na atual crise de valores, o mundo pede aos juristas idéias novas, mais que sutis intepretações.”
Para Bobbio soube enfrentar as crises postas diante dele. Dizia: “uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré formulados, isto é, com preconceitos”.
Quando a sociedade atravessa uma fase de profunda mudanças. A Ciência do Direito precisa estabelecer contatos com as Ciências Sociais, superando-se a formação jurídica departamentalizada , com sua organização sobre uma base corporativo-diciplinar , de comportamentos estanques.
O livro é composto de cinco Capítulos, a saber:
O primeiro Capítulo aborda o tema: “Da norma jurídica ao ordenamento jurídico”, cujos subtópicos tratam da novidade do problema do ordenamento; do ordenamento jurídico e definição do Direito; da pluralidade de normas e dos problemas do ordenamento jurídico.
O Capítulo 2 trata da Unidade do Ordenamento Jurídico, tendo sete subtópicos que abordam as fontes reconhecidas e fontes delegadas; dos tipos de fontes e formação histórica do ordenamento; das fontes do Direito; da construção escalonada do ordenamento; dos limites materiais e limites formais; da norma fundamental; do Direito e da força.
O terceiro Capítulo aborda a coerência do ordenamento jurídico, trazendo nos subtópicos diretrizes sobre deste ordenamento como sistema; dos três significados de sistema; das antinomias e seus vários tipos (que já abordamos), incluindo ai os critérios para a solução das antinomias e insuficiência dos critérios com seus conflitos, além do dever da coerência.
O quarto Capítulo trata da completude do ordenamento jurídico cujos subtópicos tratam dos problemas das lacunas; do dogma da completude; da crítica da completude; do espaço jurídico vazio; da norma geral exclusiva; das lacunas ideológicas; dos vários tipos de lacunas; da heterointegração e auto-integração; da analogia e dos princípios gerais do Direito.
Por fim, o quinto Capítulo trata das relações entre os ordenamentos jurídicos, cujos subtópicos sistematizam a pluralidade dos ordenamentos; dos vários tipos de relação entre ordenamentos; do Estado e ordenamentos menores; das relações temporais, espaciais e materiais.
Destaca-se as seguintes frases:
“Direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas”
“...uma norma que comandasse uma ação necessária ou proibisse uma ação impossível seria inútil; de outro lado, uma norma que proibisse uma ação necessária e ordenasse uma ação impossível seria inexeqüível.”
“Se é verdade que um ordenamento jurídico é definido através da soberania, é também verdade que a soberania se define através do ordenamento jurídico.”
“... juiz é aquele ao qual uma norma do ordenamento atribui o poder e o dever de estabelecer quem tem razão e quem não tem, e de tornar assim possível a execução de uma sanção.”
“... não existem ordenamentos jurídicos porque há normas jurídicas, mas existem normas jurídicas porque há ordenamentos jurídicos distintos dos ordenamentos não-jurídicos.”
“... fontes do direito são aqueles fatos ou atos dos quais o ordenamento jurídico depender a produção de normas jurídicas.”
“Poder e dever são dois conceitos correlatos; um não pode ficar sem o outro.”
“Não há obrigação em um sujeito sem que haja um poder em outro sujeito.”
“... a norma fundamental é um pressuposto do ordenamento: ela, num sistema normativo, exerce a mesma função que os postulados num sistema cientifico.”
“Os detentores do poder são aqueles que têm a força necessária para fazer respeitar as normas que deles emanam.”
“O Direito, como ele é, é expressão dos mais fortes, não dos mais justos. Tanto melhor, então, se os mais fortes forem também os mais justos.”
“O objetivo de todo legislador não é organizar a força, mas organizar a sociedade mediante a força.”
Lei favorável é aquela que concede beneficio (ou faculdade ou direito subjetivo); e lei odiosa é aquela que impõe uma obrigação (sob pena de sanção).
Nesse sentido, “se eu interpreto uma norma de maneira mais favorável para o devedor, minha interpretação é odiosa em relação ao credor.”
“É estrito dever do intérprete, antes de chegar à interpretação ab-rogante, tentar qualquer saída para que a norma jurídica tenha um sentido.”
‘Enquanto na antinomia é um caso no qual há mais normas do que deveria haver; o caso de lacuna, no entanto, é um caso em que há menos normas do que deveria haver.”
“Muitas normas , tanto dos Códigos como da Constituição, são normas generalíssimas, e portanto, são verdadeiros e autênticos princípios gerais expressos.”
“... o Direito natural único, comum a todos os povos, se contrapõe tantos Direitos quantos são os povos ou as nações.”
“... o ordenamento jurídico de um Estado não é um bloco compacto: assim como o geólogo pesquisa os vários estratos da terra, assim também o teórico do Direito deverá colocar-se frente a um ordenamento jurídico na atitude do historiador que nele busca as várias fases de formação.”
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