Coisas e Coisas


QUAL É A NOTÍCIA? QUAL É A PUBLICIDADE?

A edição de hoje do Diário de Notícias tem motivos particulares. Confesso que a minha formação em jornalismo não deve dar para compreender o conteúdo de algumas páginas [o que eu ensino está, pois, fora de moda].

Assim, na página 4, vem um editorial não assinado. Área nobre do jornalismo, uma oportunidade de interpretação e de tomada de posição perante um problema – no caso em apreço o anúncio de um novo modelo de financiamento para a Fundação Ciência e Tecnologia –, não há uma assinatura. Vou ter de reler o que escreveram, pelo menos, Cristina Ponte, Mário Mesquita e Nelson Traquina sobre jornalismo.

Títulos

Provavelmente, será uma posição da direcção do jornal. Mas não fica bem esse anonimato tanto mais que na página seguinte, de publicidade, vem uma assinatura. O grave é que ela seja de um jornalista do próprio Diário de Notícias, Nuno Galopim, o editor do DNMúsica. O texto publicitário tem um título que não fica atrás do da página anterior. Se o editorial se chama “Caça aos «cérebros»”, a publicidade está intitulada “Basta de choro.”. E até tem um lead: “Em tempos de crise na indústria musical, o DN e a TSF arregaçam as mangas e lançam um projecto para dar mais vida à música portuguesa”.

No texto, pode-se ler: “Nos últimos tempos, enfrentando por um lado certas restrições financeiras e por outro alimentando internamente um certo temor perante a ousadia da aposta na novidade, a esmagadora maioria das grandes editoras refrearam a assinatura de novos artistas. É certo que pontualmente temos assistido ao lançamento de novos talentos em disco, mas esta não é mais a postura prioritária em muitos catálogos. Cabe portanto às pequenas estruturas independentes o fundamental papel de renovação do panorama discográfico […]”.

Eu gosto do texto, pois tem qualidade. Mas é apenas publicidade. E o Diário de Notícias assume-se como uma editora discográfica, ou melhor como uma pequena estrutura independente. Tem um canal de distribuição própria, que é o jornal, e um canal de marketing, que continua a ser o jornal. Ou seja, o jornal é um veículo ao serviço da pequena estrutura independente!

Promoção para uma imensa minoria

Mais à frente, na página 32, há um destaque – melhor, publicidade ou promoção – ao primeiro CD do catálogo DN. Com o título “Um CD para uma imensa minoria”, que remete para o slogan da mítica e já desaparecida estação de rádio XFM. Não deixa de ser pertinente percorrer duas outras páginas da mesma edição do jornal. Nas páginas 46 e 47, o jornalista Nuno Galopim assina a entrevista ao compositor inglês Michael Nyman, famoso nomeadamente pela banda sonora do filme O piano [não confundir com dois outros importantes filmes A pianista e O pianista]. Será que, um destes dias, a entrevista se transforma em publicidade de página inteira?

Já na página 54, sob o título “Um príncipe dinamarquês dividido […]” é feita promoção ao filme que acompanha a edição do jornal de amanhã, Hamlet, de Franco Zefirelli. O texto não está assinado e a página não tem a encabeçá-la a indicação de publicidade, mas que ela é, é. Depois, na página 42, mais de um quarto de página a publicitar um livro de cinema DN, Drácula, com a indicação do respectivo preço. E, na página 61, o anúncio ao livro a sair no sábado 24 sobre a comemoração dos 30 anos do 25 de Abril. Isto sem esquecer as páginas 30 e 31 sobre a Mega Enciclopédia DN. Esta publicidade é também curiosa, num momento em que os jornais diários se engalfinham a vender enciclopédias, como há anos nos batiam à porta a vender livros.

Não sei se me escapa algum outro anúncio ou promoção. Mas acho um erro tremendo que um jornal seja alvo de tanta auto-promoção. Na televisão ainda compreendo, por se tratar de um meio que decorre ao longo do tempo, e os espectadores precisam de ser lembrados. Ao invés, um jornal é um meio físico, compacto, onde a informação está sempre disponível à sua leitura. Claro que, se um canal existe, ele deve ser explorado para a máxima exploração e rendimento. O que se lamenta é que existam zonas de não esclarecimento - ou melhor, zonas de interpenetração - em que não se sabe e confunde o que é informação e o que é publicidade. O que se lamenta é que o jornal, elemento de informação e reflexão, formador da opinião pública, seja o camião que transporta os bens produzidos pelas indústrias culturais, sem uma identificação prévia.



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