Coisas e Coisas
A REVOLUÇÃO ELECTRÓNICA DE BURROUGHS
Já há muito que andava para escrever sobre o livro de William Burroughs. Talvez ficasse melhor no blogue Teorias da Comunicação, mas como me decidi mantê-lo parado, coloco aqui a mensagem sobre este autor.
Burroughs nasceu no Missouri em 1914 e morreu em 1997 [o avó foi o inventor de uma máquina de calcular, e a
Burroughs foi, durante décadas, uma empresa ligada à computação, fundindo-se com a Sperry para dar origem à Unisys]. William Burroughs estudou literatura inglesa em Harvard, mas também se interessou pela medicina e pela antropologia. Daí a sua insistência, neste pequeno livro
A revolução electrónica, de trabalhar a palavra
vírus (com referências médicas, antropológicas, literárias e mesmo escatológicas). Ao chegar a Nova Iorque, em 1943, desenvolve a sua actividade literária no ambiente da geração
beat, tornando-se um dos seus principais esteios, ao lado de Allen Ginsberg e Kerouac.
Ora, o que nos diz o livro? É uma proposta de compor, misturando jornais, textos e gravações. Nele, há um reatar das posições de Tristan Tzara e dos surrealistas de André Breton e dos ready-mades de Marcel Duchamp, mundos imaginários, simbólicos e maquínicos. Que Burroughs prolonga e amplifica com a técnica dos
cut-up, ou o método da escrita por cortes (hoje seria o
cut and paste dos computadores).
A linguagem é um vírus
Sobre Burroughs, escreve um dos tradutores da obra, o professor José Augusto Mourão: "O cut-up introduz num universo cultural fechado, censurado, que é o da América dos anos 50, o absurdo, o perigo. W. B. torna-se um dos maiores encenadores, simuladores da utopia minoritária, da diferença" (p. 9). E o mesmo tradutor aponta à frente: "Contra a linguística, a informática e a cibernética, W. B. propõe-se enlouquecer a maquinaria narrativa, baralhando textos de proveniências várias, ao acaso, distorcendo as suas regras de construção canónicas" (p. 10). Regra: tome-se um escritor qualquer, copiem-se trechos de um texto e, ao copiar, associe outros textos e acrescente-os.
Ao contrário de Mourão, eu penso que Burroughs seguiu o caminho da cibernética, ou melhor, de uma máquina avariada. Como quando se escreve neste espaço e surge uma mensagem da Blogger, anunciando que "não é possível apresentar esta página". Se não tiver guardado a mensagem, ela esvai-se ou fica amputada. Claro que aqui é apenas a entropia do sistema a funcionar, ao passo que Burroughs encomenda o aleatório, o acaso, a participação.
Mas passemos ao texto de Burroughs propriamente dito. O autor ocupou-se do "efeito que poderia obter-se recorrendo a milhares de pessoas com gravadores, portáteis e fixos, a mensagens transmitidas" (p. 39). As fitas pré-gravadas e seleccionadas (cut-up) e trasmitidas nas ruas serviriam para espalhar boatos, o descontrolo e o caos social: "os efeitos sonoros de um motim podem criar um motim verdadeiro em situação de tumulto" (p. 40). Ou, de outro modo, "intercalem-se canções pop com o produto, depois slogans publicitários e banalidades publicitárias de outros produtos e arrecadem-se as vendas" (p. 44). Venderiam? Ou estabeleceriam a confusão? O certo é que se tornariam momentos de profundo impacto e difícil esquecimento.
Ele avisara logo: "Não ocorreria ao nosso velho rato sábio reunir os ratos jovens e passar-lhes os seus conhecimentos numa tradição oral porque todo o conceito de encadeamento do tempo não poderia ocorrer sem a palavra escrita. A palavra escrita é, evidentemente, um símbolo de qualquer coisa" (p. 20). A palavra escrita "é uma imagem, é uma figura" (p. 36). Para Burroughs, a palavra escrita seria um vírus que tornou possível a palavra falada. Robôs, gravadores de Watergate (as escutas ilegais do congresso democrático que conduziriam à demissão de Nixon) e o desvio de testes atómicos estavam na agenda do nosso autor.
E Burroughs faz uma conclusão, mesmo que provisória: "Tire-se uma carta da manga. Na maioria dos casos, não haverá suspeitas acerca da sua origem. Pelo menos é o que acontece com o leitor comum de jornais que recebe a mensagem misturada sem juízo crítico e pressupõe que esta reflecte as suas próprias opiniões independentemente formadas" (p. 48). Eis a
técnica da mistura na sua maior pujança. Pergunta-se: de onde veio? Qual o objectivo? Mas já ninguém se lembra, parece que a informação estava ali desde sempre. O vírus de Burroughs, adormecido, espalha-se. Hoje, Castells fala de redes, como anteontem McLuhan falava de aldeia global, significando ainda que todos se vêem e espiam (e quiçá se contagiam - pelas ideias, pelos estereótipos).
Em Burroughs deparamo-nos com uma escrita muito moderna ou de antecipação. Do
cut and paste, que evoquei acima, ao vírus do computador, a manipulação das fitas magnéticas (que a música minimalista empregou alegremente, misturando sons e introduzindo outros provenientes de máquinas) [o RM - registo magnético - da rádio], o fragmentário e a escrita automática dos surrealistas. Mas também vejo a técnica de colagem da pop art, o
dripping de Jackson Pollock (aliás contemporâneo de Burroughs), o remissivo (isto é, que remete para outro, isto é, o link e o hipertexto). Logo, e ainda, a teoria matemática da informação, do código binário dos zeros e uns, ou do
E e do
OU (pp. 88-89).
Para concluir mesmo, eis a receita de Burroughs: "Pode começar-se com dois gravadores. O processo mais simples de mistura são tesouras e material para colar. Pode-se começar misturando palavras, fazer toda a espécie de fita magnética, misturá-las e observar os efeitos nos amigos e em si próprio" (p. 63). Culinária tecnológica pura.
[usei a tradução de José Augusto Mourão e Maria Leonor Teles, na edição da Vega]
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