Coisas e Coisas


MEDIALOGIAS

Chegou-me agora às mãos o jornal Medialogias, número de Outono de 2003, do departamento de Ciências da Comunicação, Artes e Tecnologias, da Universidade Lusófona, com um dossier dedicado a Fernando Pessoa. Aliás, este autor é objecto de uma pós-graduação, designada Cultura e Contemporaneidade: Fernando Pessoa e a Actualidade, dirigida por Luís Filipe Teixeira, director da revista e do curso de Comunicação da universidade sediada no Campo Grande, em Lisboa.

Do jornal, de 20 páginas, destaco os textos de Fernando Correia (sobre a responsabilidade dos media, dos jornalistas e dos cidadãos), Carla Rodrigues Cardoso (sobre um livro de Jorge Paixão da Costa, Telenovela: um modo de produção) e Carla Martins (com um texto sobre Pessoa e as proximidades do jornalismo).

Também recebi, editado pela mesma universidade, a revista Caleidoscópio, com um número dedicado à Cultura de jogos, organizado por Luís Filipe Teixeira – a quem agradeço a gentileza do envio das duas publicações (o director da revista é António Machuco Rosa). Prometo voltar com mais detalhe à revista, que se situa “na tríade cultura-comunicação-novas tecnologias” (do editorial), e, em particular, a este número.

A todos, o meu desejo de continuarem a produzir investigação e informação útil e necessária.

ANTÓNIO FERRO NO BRASIL

Foi a 7 de Maio de 1922 que António Ferro partiu para o Brasil, onde fez conferências, apresentou o seu teatro e se casou por procuração com Fernanda de Castro, mantendo-se por aquele país durante cerca de um ano. Jovem ainda a fazer 27 anos, e director da Ilustração Portuguesa, a sua permanência do outro lado do Atlântico trouxe-lhe uma grande auréola mas sem direito a regressar à revista, que ele remodelara profundamente em poucos números.

Optimista, de sorriso largo, o jornalista e autor deixara Lisboa após um repasto envolvendo mais de setenta convivas, entre jornalistas, artistas, literatos, actores, músicos e críticos conforme escreve António Rodrigues, em livro que referi em mensagem do dia 5 deste mês (Rodrigues, 1995: 91) [os elementos da presente mensagem foram extraídos desse livro]. Na chegada ao Brasil, Ferro proclama-se como o porta-voz da nova geração. Realiza duas conferências, depois publicadas no Rio de Janeiro: A arte de bem morrer e a Idade do Jazz-Band, este um dos seus textos mais conceituados (a par do seu trabalho de ideólogo da primeira metade do regime ditatorial de Salazar). No Brasil, fez a apologia dos modernistas portugueses, como Almada Negreiros, António Soares, Eduardo Viana, José Pacheko, Cottinelli Telmo e Rui Coelho.

A arte de bem morrer apresentou-a no Trianon, do Rio de Janeiro, em 21 de Julho de 1922, e no Teatro Municipal de S. Paulo, em 5 de Dezembro do mesmo ano. O seu sucesso apenas seria superado com a Idade do Jazz-Band, lida ao público no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, em 30 de Julho de 1922, com apresentação de Carlos Malheiro Dias [na Biblioteca Nacional, existe um exemplar, não sei se o único, e que eu li, em meados do ano passado, que tem a assinatura de Malheiro Dias, o que quer dizer que fazia parte da biblioteca pessoal deste], após o que repetiria no Teatro Municipal de São Paulo, a 12 de Setembro. Também apresentou o mesmo trabalho em Santos e Belo Horizonte.

Um sucesso de todo o tamanho

Quando exclamava “A Arte gera a Vida, como a Vida gera a Arte. Arte e Vida estão quites. Abram os olhos, abram os olhos para o grande milagre”, calou-se, permitindo que entrassem no palco um “Jazz-Band e um corpo de mulher em dança”. Tratava-se de uma habilidade imagística, como narra Rodrigues (1995: 99), comparando esta performance com outro texto anteriormente escrito por Ferro, As grandes trágicas do silêncio, sobre as stars do cinema mudo, e que eu já destaquei em mensagem anterior. Dizia Ferro: “O Jazz-Band é o triunfo da dissonância, é a loucura instituída em juízo universal, essa caluniada loucura que é a única renovação possível do velho mundo”. A música e a dança associavam-se, nas variedades de fox-trot, one-step, tango, maxixe, schimmy e charleston. Nota Rodrigues que se dá o expoente da artificialização de António Ferro, nesse seu gosto pela extravagância culta.

Este gosto vê-se pelos seguintes gestos. A primeira conferência realizou-se no Rio de Janeiro, apenas após a chegada de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, eles que fizeram a primeira travessia aérea unindo Portugal ao Brasil. Depois, porque resolve casar por procuração com Fernanda de Castro, tendo como testemunha de procuração o próprio Gago Coutinho. Fernanda de Castro lá seguiria no navio seguinte partido de Lisboa, para se encontrar com um marido tão imprevisto quanto artista.

E foi ainda no Brasil que apresentou a sua peça Mar Alto, interpretado por uma actriz que debutara e fizera muito sucesso naquele país: Lucília Simões (São Paulo, 18 de Novembro de 1992; Rio de Janeiro, 15 de Dezembro do mesmo ano). Depois, quando a representou em Portugal, daria um grande escândalo, obrigando mesmo ao cancelamento de espectáculos. Qual era o conteúdo da peça? Tratava-se de um triângulo amoroso. Luís, poeta decadente, Madalena, mulher moderna, e o amante desta, Henrique. Este propusera aquela que abandonasse o marido e fosse viver com ela, que recusou. Um dia, Luís confessa que cometera um assalto. Madalena confessa também o seu crime e propõe-se ir viver para casa de Henrique, que é um homem rico, podendo o dinheiro deste ajudar aquele. Luís aceita, invertendo-se os papéis: passa de marido a amante. Escreve António Rodrigues (1995: 105): “Numa sociedade ainda dominada por marialvas e mulheres em gineceu, como a brasileira e a portuguesa, não surpreende o escândalo do Mar Alto”.

Foi, provavelmente, o período mais difícil da vida do casal António Ferro-Fernanda de Castro, como a própria revela nas suas memórias. A sorte veio de um convite do director do Diário de Notícias, para Ferro ingressar como repórter internacional e como crítico de teatro. Começaria a vida das grandes entrevistas aos líderes europeus (das ditaduras nascentes, incluindo Salazar). Mas também uma viagem à América e à Hollywood do cinema, que ele descreveria com muito pormenor e sagacidade. A arte, a cultura, o teatro e o cinema, além dos livros, claro, ocupavam-no ainda mais. Até que chegou o tempo da Política do Espírito, que “vendeu” a Salazar e este "comprou", resultando no Secretariado de Propaganda Nacional (SPN). Mas sobre este, não se pronuncia António Rodrigues, e muito menos eu. É que o arquivo do SPN está à espera de ser transportado para a Torre do Tombo há mais que meses, há já anos, parece-me. Primeiro, por causa de uma desinfestação, agora por falta de verba para o seu transporte. Confesso que gostaria de estudar este arquivo…

Livro: António Rodrigues (1995). António Ferro, na idade do Jazz-Band. Lisboa: Livros Horizonte



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