Coisas e Coisas


EL ROSTRE AMB QUÈ EUROPA MIRA

"A Europa jaz, posta nos cotovelos:/De Oriente a Ocidente jaz, fitando,/E toldam-lhe românticos cabelos/Olhos gregos, lembrando./O cotovelo esquerdo é recuado;/O direito é em ângulo disposto./Aquele diz Itália onde é pousado;/Este diz Inglaterra onde, afastado,/A mão sustenta, em que se apoia o rosto./Fita, com olhar esfíngico e fatal,/O Ocidente, futuro do passado./O rosto com que fita é Portugal" (Fernando Pessoa, Mensagem, Lisboa, Ática, 1979, p. 21).

revista.JPG O rosto com que a Europa olha é exactamente o mote do dossier da revista L'Avenç [O Progresso], editada em Barcelona, no seu número de Julho/Agosto de 2004: Portugal, o rosto da Europa. Escrita em catalão, a revista de história e cultura dedica 26 páginas a Portugal e à influência da nossa cultura naquela zona mediterrânica.

Os motivos são evidentes: a língua e a independência de Portugal face a Espanha (leia-se Castela) e o presente crescimento económico e cultural de Barcelona, que fazem sonhar um caminho semelhante. A simbologia traçada pelo primeiro artigo, de autoria de Víctor Martínez-Gil, professor da Universitat Autónoma de Barcelona e coordenador do dossier, aponta em tal sentido: "Na iconografia tradicional, a Europa é representada com uma figura feminina, dama ou rainha, em que a cabeça era a Hispânia". Trinta anos depois de 1974, Portugal, segundo o académico, tornou-se um país moderno na economia e na cultura. E, como escreve outro articulista, Josep Sánchez Cervelló, professor da Universitat Rovira i Virgili, se Portugal perdeu a carga colonialista e o antiespanholismo que caracterizaram o país nos últimos séculos, ganhou o respeito da comunidade internacional, pelo seu cosmopolitismo e referencial cultural. As traduções para catalão de livros de Lobo Antunes, José Saramago, Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, Herberto Helder e Luísa Costa Gomes são um indicativo dessa admiração de Barcelona por Portugal.

Independência política?

Parece que a Catalunha vive um momento de viragem. Há edições de livros que saem primeiro em catalão e depois em castelhano, as estações de rádio locais privilegiam a língua catalã, as lojas, as ementas dos restaurantes, os transportes públicos e os museus têm indicações em catalão (por vezes, seguido do castelhano e do inglês).

A publicação que refiro nesta mensagem não é estranha a tal movimento. Os textos são bem escritos, apesar de se fixarem num momento histórico preciso, o século XVII, quando Portugal recuperou a independência mas em que um movimento próximo de emancipação foi sufocado na Catalunha (exactamente em 1640, como explica Manuel de Seabra, português que vive na Catalunha e é escritor e tradutor. Aliás, Seabra refere que a capital natural da Península Ibérica no séc. XVII seria Lisboa, mas Sevilha tinha um peso igualmente forte, e a velha rivalidade de Portugal com Castilla-León não permitiria essa transferência). As marcas da guerra civil de 1936-1939 também estão visíveis na cultura de Barcelona, mas não na revista. O mote fulcral do dossier é, pois, a relação entre independência e união (ibérica).

Um traço que não posso deixar de sublinhar é o de alguma precariedade intelectual com que aparecem dois textos, um de responsabilidade de Helena Tanqueiro, directora do Centro de Língua Portuguesa/Instituto Camões de Barcelona, e outro assinado por André Murraças, autor teatral. O trabalho de Murraças é muito discutível: fala de teatro, mas insere duas imagens de filmes. Sobre a A Barraca escreve: "companhia com um tom irónico e assumidamente político, acompanha o quotidiano português" (apenas três linhas quando comparadas com as 20 linhas a seu próprio respeito! Mesmo a Cornucópia merece apenas 11 linhas). O texto de Tanqueiro destaca a linguística e a filologia, como seria de esperar a quem pertence a um centro de língua, mas não haverá outros motivos de relevo, nomeadamente a cultura, as artes cénicas e visuais? Isto sem falar nas indústrias culturais, no cinema e na televisão.

Claro que se compreende a perspectiva dos professores catalães - a de destacarem o farol de Portugal como pequeno país que se emancipou de Espanha. Mas não se aceita bem o papel do Instituto Camões, que poderia ter melhor "municiado" os responsáveis da revista com informações sobre o Portugal cosmopolita e moderno. É que não basta trazer na capa um fragmento da obra de Almada Negreiros.

Mais informações sobre a revista podem ser encontradas no sítio de L'Avenç.



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